A derrocada do advento da sociedade pós-industrial, por Elcemir Paço Cunha
As hipérboles têm se mostrado companheiras inseparáveis da venda de livros
A derrocada do advento da sociedade pós-industrial
Por Elcemir Paço Cunha (@PacoCunha) (@pacocunha.bsky.social)
Talvez não haja melhor maneira de avaliar a qualidade das ideias senão por meio das coisas realmente existentes às quais elas se referem. O tempo presente é prenhe dessa possibilidade. Muitas ideias parecem ter desbotado, perdido seu frescor. É o caso do liberalismo empedernido e muitas vezes renovado, em si romântico quanto a uma economia de pequenos empreendimentos generalizados e sem a participação estatal. A pá de cal parece vir mesmo dos Estados Unidos da América, dirigidos pelo mascate Trump e por sua horrenda trupe de reacionários. Quanta ironia.
Há outro caso muito emblemático, mas pouco comentado. Talvez em razão de sua difusão e efeito mais localizados nos círculos intelectuais. Trata-se do argumento de que a economia capitalista havia mudado de tal sorte que sua base não seria mais a produção industrial. A base teria sido modificada pelo crescimento da relevância quantitativa dos setores de serviços e, mais importante, pelo papel do conhecimento como fonte primária do desenvolvimento da riqueza. É um argumento que já acumula cinco décadas e remonta a alguns notórios intelectuais. Um exemplo é a forma teórica dos interesses práticos do capital, uma de suas personificações intelectuais na área dos negócios:
“A mais importante das mudanças é a última. O conhecimento, durante as últimas décadas, tornou-se o capital central, o centro de custos e o recurso crucial da economia. Isso muda as forças de trabalho e o trabalho; o ensino e a aprendizagem; e o significado do conhecimento e sua política. Mas também levanta o problema das responsabilidades dos novos homens do poder, os homens do conhecimento”. (Drucker, 1968, p. viii)
Talvez a versão mais difundida desse tipo de argumento seja a sociológica de Daniel Bell e seu The Coming of Post-Industrial Society: A Venture in Social Forecasting, original de 1973 (publicado no Brasil como O advento da sociedade pós-industrial em 1978). Daqueles anos em diante, quantas vezes não foram ouvidas as palavras sobre uma “sociedade pós-industrial”, calcada no “conhecimento” e que superou a produção de bens? Numa síntese, talvez sem muitos requintes, diz-se que a “sociedade industrial” era fundamentada na produção de bens industriais, em que o poder se encontrava concentrado nas mãos dos capitalistas produtivos. Por sua vez, a chamada “sociedade pós-industrial” estaria baseada especialmente no crescimento do “terceiro setor”, ou serviços, em que a fonte de poder residiria no conhecimento. Como escreveu o sociólogo de Manhattan e com olhos para os EUA de então, o “conceito de sociedade pós-industrial é uma ampla generalização”. No que diz respeito à economia em particular, tratava-se de uma “mudança de uma economia de produção de bens para uma de serviços” (p. 14). No prefácio de 1976, Bell (1999) asseverou que a “sociedade pós-industrial não é caracterizada pela teoria do trabalho, mas por uma teoria do valor-conhecimento” (p. xcii). Nesta sociedade, os serviços ganhariam predominância comparativamente à diminuição das atividades industriais. No fundamento de tudo isso, estaria uma mudança radical na base da própria produção capitalista, de sua lógica essencial:
“Uma sociedade industrial, de Ricardo a Marx, é baseada em uma teoria do valor-trabalho, e o desenvolvimento da indústria ocorre por meio de dispositivos que economizam trabalho (...). Uma sociedade pós-industrial repousa sobre uma teoria do valor-conhecimento. O conhecimento é a fonte da invenção e da inovação. Ele cria valor agregado e retornos crescentes de escala e geralmente economiza capital”. (Bell, 1999, p. xvii)
Essa ideia sempre foi errada de muitas formas e um escrutínio completo não cabe neste espaço. Para alguns não passa de um mito. Não obstante, já vimos outras vezes esse tipo de procedimento, especialmente nos exageros intelectualmente provocados na fabricação de conceitos. As hipérboles têm se mostrado companheiras inseparáveis da venda de livros. Bell em particular trabalhava com oposições intelectualmente redutoras e danosas. Ao contrapor trabalho e conhecimento, como no exemplo da passagem acima, mal-entendia a verdadeira natureza do capital enquanto uma espécie histórica de relação social por meio da qual se produzem mercadorias concretas e abstratas como “cristalizações” da força de trabalho, isto é, cérebro, pernas, braços, enfim, o conjunto das disposições físicas e subjetivas da unidade que se chama homo sapiens – unidade aparentemente desconhecida pela sociologia praticada pelo norte-americano. Esse tipo de oposição redutora dá passagem à ideia de que o conhecimento cristalizado nas mercadorias (em qualquer de suas formas, como bens de consumo, meios de produção e serviços) não passa necessariamente pelo trabalho, que não seria um atributo da atividade humana sob a forma do trabalho. Já foi dito, certa vez, por certos indivíduos, em meados do século XIX, que a “burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção” (Marx & Engels, 2005, p. 42). Isso já era lugar-comum em 1973, ano da publicação original Bell. Mas, para sociólogos de sua linhagem, a preferência é mais por tipos ideias amplamente generalizados, por experimentos ideais exagerados, e menos pela história e pela lógica das coisas. Não poderiam reconhecer que o papel do conhecimento da economia capitalista (“fonte da invenção e da inovação”) mais confirma do que contradiz a teoria do valor-trabalho.
Por outro lado, é bem verdade que o avanço tecnológico deslocou considerável grau de investimento para setores desenvolvedores de maquinarias, robótica etc., que são, digamos, mais intensos em engenharia e programação do que em operações típicas de linha de montagem. Mas segue, com isso, sendo produção de mercadorias fundada em um tipo de relação social historicamente específica. Além disso, muitas empresas produtoras de bens não se limitam a esse momento do processo global das mercadorias. Talvez a maior parte trabalhe com serviços agregados tão ou mais lucrativos quanto seus produtos, serviços sem os quais os próprios produtos não se venderiam. Quanto aos setores, por assim dizer, considerados os mais “puros em serviços”, o crescimento é inegável ao longo de todo o século XX. Para toda intelectualidade honesta, é forçoso reconhecer, porém, que mesmo nesses setores prevalece aquela histórica relação social sob a forma do capital. E quantos são os setores desse tipo que operam independentemente da produção de bens? Sinceramente, é difícil encontrar algum e, ainda assim, encontrá-lo teria baixa relevância no conjunto da economia. O turismo, por exemplo, demanda prédios de hotelaria, instalações, alimentos, carros, aviões, trens, souvenir etc. Hospitais dependem de instalações, equipamentos, máquinas, instrumentos, remédios, produtos químicos. Mesmo as redes sociais giram em torno da coleta de informações com a finalidade última de divulgar e alavancar vendas de produtos e outros serviços (além de influir em questões políticas, mas isso é outro assunto), além de ser dependentes de energia e semicondutores.
Com isso vemos que o crescimento dos serviços não significou diminuição da produção industrial como solicitou o tipo ideal “sociedade pós-industrial”, mas o contrário. A produção de bens está posta como condição — talvez em um grau de concentração tal que enganou a empiria refletida no olhar sociológico. Seja como for, os serviços puderam expandir-se dado certo estágio de desenvolvimento alcançado pela própria produção de bens, não sua diminuição. Trata-se de um todo mais complexo, em que a expansão dos serviços também puxa a possibilidade de venda de bens e até desenvolvimento de outros até então inexistentes. Há uma abundância de reciprocidades entre bens e serviços como mercadorias numa sociedade voltada para o lucro como resultado da produção. Com isso não queremos dizer que não houve modificações significativas nas últimas cinco décadas. A própria expansão e aperfeiçoamento da produção ao fundo alterou de fato os padrões industriais em termos de avanços tecnológicos, com aplicação de robótica, sistemas integrados, interligação dos equipamentos, compilação de informações em grandes sistemas etc. Houve também certos deslocamentos geográficos dessa produção de bens para a Ásia, particularmente para o território chinês. Mas isso é muito diferente de uma prevista “sociedade pós-industrial” assentada numa oposição ilusória entre conhecimento e trabalho.
A mais recente “guerra tarifária” entre Yankees e o desafiante oriental parece ser um daqueles momentos históricos capazes de iluminar a baixa correspondência de certas formas de consciência. É o caso do liberalismo, como chamamos a atenção no começo desse esboço. Também é o caso da “sociedade pós-industrial”. Naquela guerra está em jogo muito mais as rotas marítimas, as frotas de navios comerciais e o que eles transportam do que pura e simplesmente “serviços”. É obviamente uma disputa que orbita bens intermediários de alta tecnologia agregada, como semicondudores para todo tipo de equipamento (carros, celulares, mísseis, data centers, aplicações de inteligência artificial etc.), mas a disputa também envolve carros elétricos, indústria naval, tecnologias de dados e outros itens que incluem, aliás, commodities tais como minerais raros para fabricação de chips e outros bens sofisticados. A ação norte-americana é um complexo de questões entre as quais está o impulso de reaver certo grau de produção doméstica de bens hoje dispersos em variados pontos da geografia global. Na verdade, a convicta retomada da política industrial em diferentes países é de certo modo uma resposta à circunstância posta das cadeias globais de valor — nome atualizado para divisão internacional do trabalho — com concentração de momentos significativos fora do eixo ocidental. No Brasil, ganhou o nome “neoindustrialização” em 2023. Antes disso, figurou na abrangente Bidenomics nos EUA. Esses movimentos jamais podem ser confundidos com diminuição da produção de bens, mas como mudança em sua organização global.
O modo dessa organização global da produção de mercadorias e a atual tentativa, encabeçada por reacionários, de descongelamento controlado dessa organização, em nada refletem uma “mudança de uma economia de produção de bens para uma de serviços”. Parece que a “sociedade pós-industrial”, como o tipo ideal que é, não se ajusta muito bem às coisas reais. Em seu exagero intelectualmente motivado, perdeu as reciprocidades por meio das quais o todo mais complexo se move.
Referências
Bell, D. (1973). The coming of post-Industrial society: A venture in social forecasting. Basic Books: New York.
Bell, D. (1999). The coming of post-Industrial society: A venture in social forecasting. Basic Books: New York.
Drucker, P. (1968). The age of discontinuity: guidelines to our changing society. London: William Heinemann Ltd.
Marx, K. & Engels, F. (2005). Manifesto do partido comunista. 4ª reimpressão. São Paulo: Boitempo.