A desrazão dos ataques à universidade pública no Brasil, por Leandro Theodoro Guedes
O mais bem-intencionado relativista pode estar ao mesmo lado do mais reacionário dos conspiradores
A desrazão dos ataques à universidade pública no Brasil
Por Leandro Theodoro Guedes (@theodoroguedes93)
Recentemente, uma performance num evento acadêmico na UFMA (Universidade Federal do Maranhão) causou repercussão por ter um conteúdo distante do que se espera de um evento realizado em universidade pública. Para além da performance em si, não é exagero dizer que aquele acontecimento não foi um desvio, ou um acidente, mas uma nova expressão de uma tendência que acompanha as ciências humanas há algumas décadas.
A performance naquele caso foi a apresentação de um texto acadêmico. Coloca-se no texto o seguinte questionamento: “Ora, se todo mundo que produz conhecimento que é citado é cis, porque eu vou produzir conhecimento?” (p. 186). Percebe-se que o ponto de tensionamento são os sujeitos que detêm o conhecimento. É perfeitamente possível traçar paralelo deste argumento com a chamada gnosiologia aristocrática, a ideia de que o conhecimento pertence a um seleto grupo de escolhidos, dotados da iluminação. Nada mais se defende do que o pertencimento do conhecimento a um grupo específico, seja ele qual for. Aqui, essa ideia aparece como o sinal trocado. No caso, a solução apresentada no texto é a de “propor novas formas de habitar o conhecimento” (p. 188). Quer dizer, dada a inadequação do conhecimento produzido por determinados grupos, que outros grupos o produzam sob a sua perspectiva. Importam mais os detentores do conhecimento do que seu conteúdo. Não seria esse tipo de “gnosiologia” uma barreira para a própria empreitada científica? Entendemos que sim, e que este traço é uma herança de uma longa tradição na filosofia.
Em A Destruição da Razão, Lukács identificou esse aspecto na filosofia de autores como Heidegger. Mais do que isso, nesta obra, o filósofo húngaro identificou outros aspectos mais que compunham o denominado irracionalismo – tendências reacionárias da filosofia alemã do período imperialista – e sua depreciação da ciência, que contribuiu com a formulação da visão de mundo nazista. Em 1953, Lukács dizia que a derrota do nazismo nos campos de batalha não havia significado a derrota do irracionalismo no campo ideológico.
Lukács, contudo, não imaginava que a renovação desse irracionalismo mudaria de sinal. Expressão importante dessa renovação pôde ser identificada nos autores que influenciaram o Maio de 1968, na França. Ali, a filosofia que influenciava a extrema direita alemã, passou a influenciar a esquerda. Vários pesquisadores identificaram essa continuidade (Perry & Renaut, 1986, Foster, 2023). Na disputa daquele movimento popular de estudantes e trabalhadores, passou a figurar uma ideologia que se colocava em nome da luta contra o “sistema”, da libertação das individualidades, que atacava o dito fracassado pensamento universalista e o burocratismo opressor. A respeito das consequências desse processo, Perry e Renaut (1986) indagaram: “Se a verdade deve ser despedaçada, se não há fatos, mas apenas interpretações, se a referência a normas universais é sempre catastrófica, o essencial não seria, como se diz, ‘participar’?” (p. 263). Aquela ideologia que se voltava contra o conhecimento tinha também uma missão social muito clara: dissolver a direção daquele clima contestatório.
Mais tarde, nos anos 1970, o “fracasso” do mundo moderno (condenado no lugar da sociedade capitalista) levava à descrença nas chamadas “grandes narrativas” que foram invalidadas diante do fracasso do capitalismo liberal e das experiências socialistas. A pós-modernidade entrava em cena. Colocava-se no lugar um pensamento para o qual não havia objetividade do conhecimento, apenas perspectivas sobre a realidade, que tornava a ciência mero discurso (de poder) que no fim das contas serviria para validar o que os sujeitos diziam sobre si mesmos.
Ao comentar o fenômeno pós-moderno no plano das ideias, Sergio Rouanet (1998), em As Razões do Iluminismo, faz a seguinte síntese: “a razão não é denunciada enquanto tal, e sim na medida em que perde sua função subversiva e transforma-se em álibi do poder, agente da heteronomia, adversaria do prazer ou instrumento da repressão” (p. 242). Não é mera coincidência que no texto que enredou a performance na UFMA se diz que “Converter a metodologia da dor em prazer: esse foi o grande desafio desta pesquisa” (p. 191). Certamente essa proposição não poderia ser pensada sem esse arcabouço filosófico que se constrói há décadas e se faz presente com vigor no mundo acadêmico.
Rouanet (1998) ainda adiciona que “Tanto para os que temem quanto para os que saúdam o advento desse mundo novo, Nietzsche, Heidegger, Derrida e Foucault são vistos como os profetas da pós-modernidade filosófica. Eles anunciam o reino do fragmento, contra a totalização, do descontínuo e do múltiplo, contra a teleologia das grandes narrativas e o terrorismo das grandes sínteses, do particular contra o geral, do corpo contra a razão” (p. 244), ao que pode ser lido no texto base da referida performance: “pensar que o corpo por si só fala, o corpo tem conhecimento” (p. 188). Esse pensamento que se desenvolveu e ganhou novas feições tornou-se de fato um paradigma nas ciências humanas e, mesmo sem ser citado, é rememorado em elaborações como a apresentada na UFMA.
É nessa esteira que surgem variações pretensamente autênticas como o pensamento decolonial, cujo objetivo seria exatamente impulsionar o conhecimento produzido na periferia do capitalismo, concentrando-se nessas particularidades para melhor compreendê-las e levantar alternativas para seus problemas. O problema é que essa pretensão se perde quando as bases filosóficas são as mesmas que ergueram aquele irracionalismo alemão. Penna (2023), por exemplo, mostra como W. Mignolo, um expoente decolonial, é uma versão tardia da filosofia da vida. O que resta é uma luta contra o conhecimento pelo simples fato de ser produzido no Velho Continente.
Todo esse caldo cultural, que contribuiu com a virada do irracionalismo à esquerda, tem força significativa nas universidades e “ressignifica” aqueles próceres conservadores e reacionários da filosofia alemã na luta contra o conhecimento. Ao mesmo tempo, no contemporâneo, um irracionalismo de caráter mais rebaixado, urdido em fake news e teorias conspiratórias, enxerga as universidades como centros de libertinagem e coisas piores.
Assim como o movimento efervescente na França em 1968 foi capturado e perdeu força, certamente com alguma contribuição daquele ideário tributário do irracionalismo alemão, é pertinente se questionar para onde esse pensamento atual anticientífico pode levar as mobilizações sociais do contemporâneo. Como bem ressaltou Rodrigo Perez Oliveira, hoje a universidade é atacada por dentro e por fora. E o maior agravante é que os ataques são municiados pelo mesmo arsenal. O mais bem-intencionado relativista pode estar ao mesmo lado do mais reacionário dos conspiradores, uma vez que as intenções não são nada diante das ações concretas e suas consequências implacáveis.
Referências
Ferry, L. & Renaut, A. (1988). Pensamento 68. São Paulo. Editora Ensaio, n. 20.
Foster, J. B. (2023). O Novo Irracionalismo. Verinotio, v. 28, n. 2. Disponível em https://verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/article/view/692
Lukács, G. (2020). A Destruição da Razão. São Paulo: Instituto Lukács.
Penna, L. N. Portugal. (2023). Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”: convergências entre a filosofia da vida da fase imperialista e a teoria decolonial do conhecimento de W. Mignolo. Verinotio, v. 28, n. 1. Disponível em: https://verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/article/view/680
Rouanet, S. (1998). As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras.