A máquina do tempo financeira: lucros fictícios e a política de ajustes, por Thiago Rezende
Quando o amanhã acontece hoje.
A máquina do tempo financeira: lucros fictícios e a política de ajustes
Por Thiago Dutra Hollanda de Rezende
No capitalismo contemporâneo, as relações econômicas transformaram o tempo em uma mercadoria fluida, onde presente e futuro se misturam em um jogo especulativo. O capital fictício, composto por títulos e papéis financeiros cujo valor não está vinculado diretamente à produção real ou ao valor investido originalmente, exemplifica essa dinâmica. Ao antecipar lucros futuros e incorporá-los ao valor presente, os mercados criam uma economia baseada em expectativas, mais do que em realidades concretas. Essa lógica altera o modo como indivíduos e empresas percebem o tempo, tornando o futuro um terreno de disputa que impacta decisões imediatas, como se o “amanhã” já estivesse acontecendo “hoje”. Assim como em De Volta para o Futuro, onde escolhas no passado (que pode ser o presente ou o futuro) moldam diretamente o que acontece no futuro (que pode ser o passado ou o presente), no capitalismo atual as decisões financeiras atuais projetam um futuro moldado por suposições que se realizam a valor presente.
Essa dinâmica, no entanto, não é isenta de contradições. Ao serem borradas as fronteiras entre presente e futuro, é criada uma instabilidade, onde o valor atribuído aos ativos depende mais de narrativas otimistas (para alguém ou alguns) do que de fundamentos sólidos na materialidade das relações de produção e circulação de mercadorias. Se por um lado, isso provoca ciclos de euforia e crise, pois expectativas mais ou menos infladas frequentemente colidem com realidades econômicas mais ou menos promissoras, por outro, aos agentes condutores da administração fiscal e monetária, isso se reflete em tomada de decisões sobre uma máquina do tempo que não garante o destino exato da viagem.
Os lucros fictícios gerados pelo capital fictício são fruto de uma lógica que dissocia a riqueza do trabalho produtivo, criando uma economia baseada em expectativas e abstrações. Títulos públicos, ações, certificados, contratos futuros e outros ativos financeiros, embora não representem capital real, aparecem aos seus proprietários como promessas de acesso a uma parcela de mais-valor futuro, derivada de dividendos, juros ou diferenças de expectativas sobre o valor de um número cada vez maior de elementos. Esses papéis não resultam diretamente de uma produção concreta de bens ou serviços, mas de uma antecipação especulativa de ganhos futuros.
Com a aplicação das TICs e a integração financeirizada das economias, as fronteiras entre o capital fictício e o capital portador de juros também se tornam borradas, uma vez que se é possível a transação e resgate destes papeis de formas cada vez mais imediatas. Essa intensificação da financeirização prioriza a liquidez e o curto prazo, promovendo a circulação acelerada desses papéis financeiros. Essa dinâmica cria oportunidades para que os proprietários resgatem de forma imediata o valor especulado, sem a necessidade de que a riqueza subjacente seja efetivamente gerada. Isso alimenta ciclos de volatilidade e crises, uma vez que a desconexão entre o valor nominal dos ativos e sua base real pode levar a colapsos súbitos quando expectativas não são concretizadas.
Para o capital financeiro garantir ganhos imediatos e futuros, estes têm de ser reais, portanto, acima da inflação vigente. Dentro da realidade financeirizada, especialmente em uma realidade econômica cada vez mais dada à subordinação ao rentismo, a força pelo controle da inflação é maior que a gravidade solar. Como não podem controlar secas e custos produtivos, os gestores públicos brasileiros têm utilizado basicamente dois botões da máquina do tempo para lidar com esse problema recorrente em economias dependentes: botão Selic e botão ajuste fiscal. Os dois estão voltados ao futuro, e pensados para propiciar um controle da taxa de inflação para 2026. Mas seus efeitos são presentes.
O botão Selic acresce ao orçamento de gastos financeiros cerca de R$ 40 bilhões a cada ponto percentual, tudo para o “bem” de esfriar a economia. Curiosamente, isto é mais que a metade do valor anunciado de cortes para atender às demandas do mesmo mercado que passou a apostar em uma Selic de quase 15% em 2026 e de 13% já em maio de 2025. O ajuste de R$ 70 bilhões nos próximos dois anos anunciado não agradou o grande capital, especialmente pelo fato de ter sido acompanhado de um atabalhoado anúncio de reforma tributária levemente progressista. Se a máquina do tempo de dois botões do governo funciona de forma limitada, a máquina das finanças só pela sua chateação fez o câmbio se desvalorizar muito mais do que durante um evento impactante como as enchentes no sul do país no primeiro semestre deste ano. Essa desvalorização foi mais um fator que aumentou a pressão inflacionária, junto com o preço da energia, de alimentos e o mercado interno aquecido, o que tornou irresistível ao Copom encerrar 2024 com a Selic a 12%, confirmando as expectativas de quem tem a máquina do tempo que dificilmente falha aos seus interesses.
A inflação mais alta impacta diretamente o custo da dívida pública ao elevar as taxas de juros exigidas pelos credores, que buscam se proteger contra a perda de valor real de seus investimentos. Os juros incorporam não apenas a compensação pela desvalorização causada pela inflação, mas também um prêmio de risco adicional para mitigar as incertezas associadas a um ambiente inflacionário instável e a uma dívida com proporção maior em relação ao PIB. Ao priorizar o controle da inflação por meio de altas taxas de juros, o Banco Central intensifica a transferência de recursos públicos para os credores da dívida, ampliando o custo da máquina estatal enquanto desestimula o investimento produtivo.
Se por um lado, é verdade que a inflação pode penalizar mais os menos favorecidos, já que dispõem de menos meios para se proteger dos seus efeitos, é evidente que esses podem ser ainda mais penalizados pelas limitadas medidas políticas e econômicas para tentar reduzir a escalada inflacionária. Se por um lado, há quem creia que os sacrifícios dos mais pobres terão que valer a pena por pura fé ideológica, embora exemplos históricos tendam a demonstrar efeitos temerários da austeridade, por outro lado, a realidade é que o ataque a direitos sociais mínimos como o BPC, aposentadorias e às regras do salário-mínimo tende a ampliar a desproteção social e piorar a já péssima qualidade de vida dos mais necessitados no país. Além disso, há o efeito de retração do investimento e do crescimento econômico, já que com ativos financeiros mais atrativos e seguros que os arriscados investimentos produtivos, a escolha do capital não é muito difícil, e já tem sido prejudicada mesmo em momento de crescimento econômico.
Há o caráter forte de classe nessa escolha. Cortar dos mais pobres parece ser a forma mais fácil de apertar o botão do ajuste fiscal do que encarar o grande capital financeiro beneficiado com dividendos não tributados ou com ganhos privilegiados. Assim se mantém no futuro um país que não tributa grandes fortunas, não tributa dividendos e juros sobre o capital próprio, mal tributa a propriedade de quem pode ser tributado e que garante renúncias fiscais de R$ 646 bilhões, ou quase 6% do PIB, que seriam mais do que suficientes para cobrir os famigerados déficits primários, ainda seguindo a lógica do ajuste fiscal.
No cinema, as consequências de mudar eventos no tempo criam linhas temporais alternativas; de forma similar, no capitalismo contemporâneo, a antecipação do futuro econômico cria realidades que podem ou não se concretizar de acordo com decisões que espelham as lutas de classes e a disputas em torno do orçamento público e da apropriação da riqueza social produzida. Essa sobreposição temporal tem cada vez mais reduzido a forma como Estado pode ou não agir, promovendo uma alienação que afasta as decisões políticas da materialidade das necessidades de desenvolvimento e proteção social no presente para a maioria e nos aprisiona em uma posição de defesa passiva e subordinada ante o que ainda está por vir para uma minoria.