A razão na desrazão, por Thiago Jorge e Henrique Queiroz
Relação Estado e Capital no setor das IAs
A razão na desrazão: relação estado e capital no setor das IAs
Por Thiago Jorge e Henrique Queiroz
Imagem: Freepik
Vem ganhando cada vez mais destaque, quase sempre por razões controversas, falas e ações protagonizadas por Elon Musk, dono do X (antigo Twitter). Tais atos, em toda a sua estranheza, levantam questionamentos não só quanto aos reais interesses do bilionário, mas também sobre a própria racionalidade da gestão do X, como um negócio voltado a gerar receitas.
No episódio mais recente, que até o momento redunda na suspensão da rede social em território brasileiro, as ações de Musk se assemelham muito mais a uma atuação militante do que com a atuação de um gestor minimamente competente. E, longe de ser um ponto fora da curva, tal episódio parece apenas mais um, numa trajetória cercada por episódios controversos. Poderíamos lembrar da época das ondas de demissão de funcionários que, inclusive, ameaçaram o funcionamento do então Twitter logo nos primeiros meses sob a gestão Musk. A própria alteração do nome, que até hoje confunde usuários, parece um ato pouco recomendável se encarado unicamente sob o ponto de vista da gestão do negócio.
Paralelamente a isso, as ações envolvendo outro bilionário Pavel Durov (fundador e CEO do Telegram), surpreendentemente, assemelham-se em muito às ações de Musk. Ou seja, aquela que parecia ser uma linha de gestão calamitosa seguida por um bilionário excêntrico, e até possivelmente em desequilíbrio mental, na realidade pode vir a se mostrar uma estratégia a ser seguida por seus pares.
Tal fato, no entanto, não elimina a necessidade de jogarmos luz sobre o que confere racionalidade a ações aparentemente irracionais. E para isso, devemos buscar uma base de comparação em grandes negócios, mas que operam por meio de uma linha de atuação mais convencional.
Conhecemos já de longa data a figura dos lobistas, isto é, aqueles indivíduos que buscam influenciar parlamentares a partir do interesse de negócios que eles representam. Ainda que não seja a profissão que goze de maior prestígio social, sua linha de atuação é perfeitamente compreensível para qualquer observador minimamente isento.
Um pouco menos conhecido é o fenômeno da porta-giratória, que indica a rotação de indivíduos por postos chave em empresas e no Estado. Não muito diferentemente dos lobistas, enquanto atuam como gestores políticos, tais indivíduos buscam influenciar o “ambiente de negócio” em favor dos interesses empresariais que representam.
Contudo, o que a linha pouco convencional de Musk e Durov parecem indicar é uma escalada no antagonismo direto dos meios empregados para influenciar os gestores políticos. E aqui uma nova questão deve ser enfrentada: por que seria vantajoso romper com as estratégias mais convencionais (lobistas e porta-giratória) e partir para estratégias mais ousadas?
A resposta não parece simples, mas alguns elementos já parecem mais evidentes. O primeiro e mais óbvio: estamos nos debruçando sobre a ação de dois indivíduos que possuem um patrimônio na casa de bilhões de dólares. Ou seja, para eles, o leque de opções é um pouco mais extenso do que para detentores de menor poderio econômico.
Outro ponto que parece fundamental é que a fortuna desses indivíduos está ligada a várias formas de negócios que se estendem por todo o globo. Para a construção do melhor ambiente para seus negócios não basta, portanto, contar com um pequeno exército de lobistas e gestores influentes o suficiente para girarem por diferentes Estados. No caso deles, parece fazer muito mais sentido atuar sobre a opinião pública em escala global ainda que milhões de dólares tenham de ser despendidos não apenas na construção de plataformas digitais, mas também com os muitos contenciosos (na esfera jurídica e legislativa).
Outros elementos neste sentido podem partir de dois grandes exemplos: os debates envolvendo a regulamentação da Inteligência Artificial e de proteção de dados pessoais. Em ambos os casos, a regulamentação da atividade pode implicar na desarticulação de uma série de negócios embrionários ou, ao menos, na elevação dos seus custos operacionais.
Sabemos que a criação e treinamento de plataformas de IA tem provocado um enorme volume de investimentos no setor, ao mesmo tempo em que alimentam uma repercussão espetaculosa por parte da mídia especializada. Começa a ficar claro, no entanto, que essa repercussão é alimentada por boa dose de sensacionalismo e que, no melhor dos cenários, os investimentos realizados gerarão os retornos esperados somente daqui alguns anos. Diante disso, a regulamentação das atividades pode ser vista, por parte dos empresários do setor, como uma ameaça ainda maior sobre esses retornos incertos.
Até o presente momento, quem mais está conseguindo expandir e aproveitar desta euforia no setor são as empresas de desenvolvimento de chips que sustentam o funcionamento das IAs. No entanto, essas empresas que ficam fora desse turbilhão de polêmicas devem, ao mesmo tempo, conviver com a ameaça de uma crise especulativa no setor de IA, dar respostas a necessidade de aumento do poder de processamento para permitir a máxima exploração do potencial da IA e encarar a ameaça de que os próprios empresários que exploram diretamente a IA, entre eles Elon Musk, decidam produzir os seus próprios chips.
Ou seja, o leque de empresários que se sentem ameaçados pelas incertezas que pairam sobre o setor de Inteligência Artificial é bastante extenso e seus interesses soam cada vez mais dissonantes. Estratégias desesperadas devem, portanto, se tornar cada vez mais esperadas.
É inegável, também, que a inteligência artificial traz impactos significativos quanto a riscos de vazamento ou roubo de dados, uso indevido de informações sensíveis de governos e indivíduos e a falta de transparência sobre como e para que os dados são utilizados. Este último ponto, por exemplo, foi o que motivou a recente prisão de Durov na França. Ele é acusado de cumplicidade com variadas formas de organização criminosa que operam no Telegram, ao recusar cooperar com as informações e documentos que levem a interceptar estas organizações.
Estamos portanto diante de um cenário que, de um lado envolve quantias proibitivas de recursos financeiros e, de outro envolve uma série de incertezas econômicas e sociais que demandam a intervenção dos gestores políticos. Nessa linha, a reação de Musk e Durov pode conter uma série de excentricidade própria dessas figuras, mas se tornam respostas aos desafios concretos que enfrentam e refletem a forma como entendem sua relação com o estado.