A “uberização” das ciências sociais, por Elcemir Paço Cunha
A “uberização” das ciências sociais
Por Elcemir Paço Cunha (@PacoCunha) (@pacocunha.bsky.social)
Como produtos históricos que são, as ciências sociais nasceram com uma dupla tarefa (Lukács, 2013). Por um lado, como toda ciência minimamente digna desse nome, procura aproximações da vida social para afirmar quais são suas propriedades essenciais, explicar como funciona, capturar tendências e eventualmente manifestar prognósticos. Não importa aqui a qualidade dessas aproximações. De outro lado, as ciências sociais se manifestam historicamente como respostas às grandes e pequenas questões postas objetivamente por essa mesma vida social. De um modo ou de outro, e certas ou erradas, tais respostas apresentam, entre outras coisas, quais fatores seriam os mais significativos e as linhas de ação (individual e coletiva) diante deles. E não importa aqui se foram ou não capazes de influenciar efetivamente essa ação.
Certas ou erradas, efetivas ou não, não é de menor importância dar atenção àquilo que em certo tempo e lugar ocupa as preocupações dos praticantes dessas ciências sociais. É possível destacar o que se passa pelo menos em parte dessa grande área no Brasil, a exemplo da sociologia do trabalho e da economia heterodoxa, além de seus alcances laterais nas ciências sociais aplicadas.
Nesse recorte, é muito difícil ignorar o volume da produção a respeito da chamada “uberização”. É um termo consideravelmente genérico para um conjunto de atividades laborais sob o regime de plataformas digitais. Esse conjunto se consolidou como significativo foco de atenção e movimenta um exército de estudantes nos diferentes níveis de formação e pesquisadores com longos currículos. Artigos, teses, dissertações, livros e eventos alcançaram grande volume. Qualquer levantamento inicial acerca do termo “uberização” retorna com milhares de referências e materiais. É uma autêntica “uberização” das ciências sociais.
Há nisso uma noção muito frequente, mais subjacente e não necessariamente dita, segundo a qual a “uberização” do trabalho se tornou uma espécie de centro explicativo do funcionamento da economia capitalista. O uso das plataformas refletiria um ponto alto do desenvolvimento contraditório da tecnologia sobre o trabalho, requerendo formas de regulação sob o prisma de um trabalhismo que inclua os trabalhadores sob o manto da proteção do regime tradicional de assalariamento. Um exercício de impopularidade acadêmica, porém, pode ser praticado com perguntas inconvenientes: qual é a natureza do fenômeno?
O elemento mais forte da “uberização” é o transporte urbano de pessoas e coisas (alimentos, remédios etc.). Devemos delimitar um pouco mais no transporte urbano de pessoas. Nessa direção, um dos erros muito comuns nas análises é a comparação recorrente entre esse setor e a produção. Disso resulta o exercício de analogias. Assim, é muito comum ler a respeito do fordismo, pós-fordismo, toyotismo e variações nos materiais dedicados à “uberização” — e alguns foram mais além, vendo um “plat-fordismo” num chamado “capitalismo de plataforma”. Também é frequente o entendimento de que o papel que a maquinaria teve na produção industrial sobre o trabalho seria o mesmo que o das plataformas sobre os motoristas. Da mesma forma, o ponto alto do desenvolvimento da robótica na produção seria equivalente àquilo que ocorre no setor de motoristas por aplicativos, e assim por diante. As analogias não têm limites.
Para identificar o problema disso é necessário recorrer à história e à diferença na unidade entre base técnica e organização do trabalho (Paço Cunha, Penna, Guedes, 2021). Sejamos econômicos.
Com efeito, é preciso recordar que estamos diante da atividade de transportar pessoas, sobretudo no contexto urbano. De carroças com cavalos aos motores elétricos, a natureza da atividade é o deslocamento físico de pessoas de um ponto a outro no espaço urbano, movimento este realizado por um trabalhador que conduz um meio de transporte. Foi uma mudança significativa a troca de força animal por força à combustão nas primeiras décadas do século XX. Após isso, variadas outras mudanças foram adicionadas aos veículos em termos de segurança, conforto e velocidade. Mas essas últimas alterações modificaram muito pouco a atividade em si de condução do meio de transporte. A mudança de combustão à eletricidade, por exemplo, pouco efeito produz sobre a tarefa. Isolando-se o motorista e o veículo, temos o trabalhador e seu instrumento de trabalho. Outras tecnologias foram agregadas, como a geolocalização. Mas isso também não alterou o essencial: o trabalhador que opera seu instrumento. Até aqui temos modificações históricas essencialmente incrementais em uma base técnica particular, esta entendida no geral como a “especificidade dos meios empregados” (...). Essa base técnica se altera de forma incremental ou radical” (Paço Cunha, 2019, p. 89).
Precisamos considerar outras modificações importantes, especialmente no modo de organização do trabalho de transporte de pessoas, organização esta entendida de modo geral como uma “dada combinação dos diferentes indivíduos na relação com a operação dos meios [...] variando a forma e o grau de divisão do trabalho e especialização” de modo que certas inovações organizacionais “podem igualmente assumir forma incremental ou mais substantiva” (Paço Cunha, 2019, p. 89). Os motoristas podem, pois, trabalhar sozinhos ou podem operar de modo combinado na forma de frotas. O motorista individualmente controla a si próprio. Já a frota precisa de uma coordenação que se deu primeiro por meio de burocracias simples de registro e, depois, com o uso de rádios. A coordenação dessa organização do trabalho se desdobrou como plataformas digitais na economia capitalista. Foram modificações, portanto, no modo de organização da força de trabalho e não na base técnica que expressa a especificidade do trabalho e os meios empregados. Ao controlar o acesso dos condutores à demanda, a plataforma organiza o trabalho acionando os condutores, ranqueando seus serviços, definindo as taxas, etc. Nisso vemos que a plataforma digital opera essencialmente sobre a combinação do trabalho e, por isso, não é uma alteração na base técnica propriamente.
Claro que há reciprocidades entre essas modificações na base técnica e na organização do trabalho uma vez que formam uma unidade. É um assunto mais longo (Paço Cunha, Penna, Guedes, 2021). No momento é importante destacar que as modificações históricas do lado da organização do trabalho de transporte de pessoas refletem um salto no controle do trabalho por meio das plataformas digitais. Do lado da base técnica, o transporte de pessoas pode ser considerado um trabalho arcaico sobre uma base técnica rudimentar – e não apenas “precarizado”, como é empiricamente observável (Antunes, 2020, Slee, 2019), dispensando muito esforço científico. No essencial, pois, ainda é o trabalho que opera seu instrumento de produção. No conjunto, é um tipo de operação com aperfeiçoamentos incrementais na base técnica e mais sofisticados na organização do trabalho uma vez que organiza o trabalho arcaico geograficamente disperso por meio de sistema informacional e de geolocalização, alcançando mundialmente 7 milhões de motoristas e entregadores sob a plataforma e apenas no caso da Uber.
É claro que essa modificação da organização do trabalho afetou diretamente o processo do trabalho de transportar pessoas dadas as reciprocidades existentes. E talvez esteja mesmo criando as condições para a alteração mais significativa na base técnica. No atual estágio, o passo seguinte de modificação da base técnica é a operação dos veículos sem condutores humanos. Uma imagem futura plausível é a operação ocorrer por meio de veículos autônomos que serão organizados a partir de uma central de controle. A tendência aponta para maior ampliação da sofisticação do sistema para controle da frota automatizada, o que implica a necessidade de manutenção técnica da frota e de atendimento emergencial das “abelhas desgarradas”. Se isso se realizará ou não e em qual velocidade, é outro assunto.
Enquanto isso não ocorre, é muito óbvio que o trabalho do motorista se realiza sob um regime que poderíamos mesmo considerar como pré-assalariamento em sentido convencional. Como muitos analistas notam com facilidade, não há regramentos claros, reconhecimentos de direitos, condições dignas de trabalho etc., em uma relação desproporcional sem organização sindical. E é aqui que ocorre um lusco-fusco que confunde os sentidos. Comparado ao assalariamento convencional, direto e explícito, esse assalariamento mediado (e disfarçado) por plataforma digital se coloca, para muitos protagonistas do debate público, como uma “tendência destrutiva em relação ao trabalho”, tendência que precisa ser “fortemente confrontada, recusada e obstada, sob todas as formas possíveis” (Antunes, 2020, p. s/p). Assim,
“(...) se não forem criadas barreiras e confrontações sociais fortes, teremos uma ampliação exponencial de trabalho morto, por meio do crescimento do maquinário informacional-digital. Tais alterações trarão, além da redução quantitativa do trabalho vivo, profundas transformações qualitativas, uma vez que o trabalho morto, ao ampliar seu domínio sobre o trabalho vivo, aprofundará ainda mais a subsunção real do trabalho ao capital, nessa nova fase digital, algorítmica e financeira que pauta o mundo corporativo de nosso tempo”. (Antunes, 2020, p. s/p).
Diante desse quadro, a alternativa apresentada é a equalização desse trabalho precarizado ao regime de assalariamento convencional. Focalizando dessa maneira a questão, essa ciência social procura direcionar a atenção no debate público, busca colocar uma agenda com uma posição. Vemos que é uma posição protetiva, talvez conservadora sob um aspecto crucial: a defesa do regime de assalariamento contrariamente as formas regressivas.
Na passagem anterior fica explícita a defesa do trabalho vivo, o evitamento de sua “redução quantitativa”. A isso podemos colocar outra possibilidade, a alternativa de acelerar a tendência já posta de modificação da base técnica para o salto realmente qualitativo em direção aos veículos autônomos. Aliás, essa poderia mesmo ser uma tática para muitos assuntos correlatos: acelerar a própria tendência imanente do capital até aqui, tendência nunca plenamente realizável numa economia capitalista, em reduzir ao mínimo possível a necessidade de trabalho vivo, procurando estabelecer, porém, medidas para que esse resultado fosse em benefício da humanidade – entrevendo aqui uma transição para além do regime capitalista. Marx insistiu nessa contradição em que o capital, por um lado, “procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo em que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza” (Marx, 2011, p. 588). O saudoso Mario Duayer tocou diversas vezes essa nota para indicar que a “crítica ontológica elaborada por Marx é crítica da centralidade do trabalho própria e específica da sociedade capitalista”. Nessa crítica coerente,
“(...) o trabalho efetivamente livre tem por pressuposto o desenvolvimento da produtividade do trabalho e, em consequência, a progressiva redução do trabalho vivo requerido, mesmo com a expansão e diversificação das necessidades que emergem do próprio desenvolvimento. O tempo livre criado em contrapartida é tempo crescente que pode ser dedicado a outras atividades”. (Duayer, 2016, p. 39-40)
De maneira simples, temos uma crítica ao trabalho para a redução progressiva da necessidade de trabalhar, não a defesa do trabalho pela régua do assalariamento convencional contra a forma regressiva – por mais hedionda que seja. Nisso vemos como a “uberização” das ciências sociais traz notórias consequências. Não apenas pode dificultar a compreensão do fenômeno ao, por meio de analogias, eliminar a peculiar relação entre base técnica e organização do trabalho historicamente desdobrada no setor de transportes de pessoas nas cidades, como pode também apresentar uma linha de ação individual e coletiva que condena a humanidade ao trabalho ao invés de libertá-la.
Referências
Antunes, R. (2020). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Boitempo Editorial.
Duayer, M. (2016). Marx e a crítica ontológica da sociedade capitalista. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Ano XI, n. 22.
Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social (Vol. 2). Boitempo.
Marx, K. (2011). Grundrisse. São Paulo: Boitempo.
Paço Cunha, E. (2019). Base técnica e organização do trabalho na manufatura e grande indústria. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, 25(1).
Paço Cunha, E. Penna, L. N. P., & Guedes, L. T. (2021). Da manufatura moderna à grande indústria: delimitação empírica da mudança técnica no setor de autoveículos no Brasil (1996-2017). Cadernos EBAPE.BR, 19(3), 480–495. https://doi.org/10.1590/1679-395120200077
Slee, T. (2019). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Editora Elefante.