As ideias econômicas e sua potência, por Elcemir Paço Cunha
A tradição marxista acumulou páginas suficientes para sublinhar, de modo sintético, que as formações ideias (filosóficas, políticas, econômicas etc.) têm gênese a partir de condições histórico-materiais como respostas aos problemas e mais importantes conflitos de sua época. E ninguém alimenta sérias dúvidas a respeito do eventual poder das ideias, uma vez vertidas em “força material“, em influenciar de modos variados o cotidiano, em particular a vida econômica da sociedade. O mais difícil nessa seara é estabelecer como, historicamente, esses efeitos foram de fato produzidos e em quais direções (Paço Cunha, 2023).
É sintoma disso, por exemplo, o esforço de precisar como F. Hayek se tornou o patrono do neoliberalismo tenha que sustentar uma espécie de saída sociológica genérica e um vazio de resposta (link alternativo para o artigo). Focaliza-se, geralmente, a atividade da Mont Pèlerin Society e os intelectuais envolvidos (entre eles, Friedman, von Mises, Polanyi, Popper), além de estabelecer certa rede de contatos entre esses personagens e os históricos administradores políticos da acumulação na figura de R. Reagan e M. Tatcher, por exemplo. Não que tais pontos sejam desimportantes.
Não devemos ser muito exigentes, pois a tarefa de fato não está entre as pouco difíceis. Mesmo porque, em geral, procura-se, inicialmente, estabelecer tendencialmente as relações de causalidade entre determinadas práticas de política econômica, no caso, e as formações ideais aparentemente associadas. Existem, entretanto, importantes dimensões interconectadas que tornam a tarefa muito árdua, tais como a sociológica, a ambientação política que expressa a correlação de forças sobretudo no direcionamento estatal, as condições econômicas às quais esse direcionamento responde, as formações ideais circulantes e em disputas etc. No bojo, é a unidade de fatores relacionados por meio de complexas reciprocidades entre a estrutura econômica como fator preponderante, a superestrutura ideológica e as formas sociais de consciência, tal como notabilizada por Marx. Além do reconhecimento de tais fatores em reciprocidade com preponderância das condições materiais, é importante ter em mente que há um “desenvolvimento desigual” entre eles. E isso não apenas em termos de temporalidade e velocidade das mudanças, mas também no que diz respeito à natureza diferencial de tais fatores.
Chamo a atenção, nesse sentido, para uma questão que parece ser decisiva, embora não seja a única. Enquanto o plano das ideias pode acomodar mais facilmente, por exemplo, as contradições objetivas, o plano da prática precisa lidar com a objetividade propriamente dita delas, os limites que tais contradições impõem às possibilidades reais de ação – que eventualmente faculta a correção de tais ideias. Esse diferencial de natureza pode ser observado na ausência de acaso, por exemplo, na avaliação de que governo algum pode ser tão “liberal” em correspondência às exigências “liberais”. Lembro aqui das restrições que F. Hayek fez a M. Tatcher e a R. Reagan. Ao avaliá-los em 1989, teria afirmado em tom de desapontamento que foram “tão razoáveis quanto poderíamos esperar naquele tempo. Eles são modestos em suas ambições” (apud Wapshott, 2011, p. 288). Jamais seriam suficientemente “austríacos”.
No tipo de prática (política econômica em sentido amplo) que estamos concentrados, há muitas clivagens e complexidades envolvidas, como sabemos. No que assumimos como administração política da acumulação, prática alguma pode espelhar integralmente as ideias que procuram sobre ela influir. Esse fato, aliás, é o que ajuda a “salvar”, por assim dizer, algumas ideias econômicas dos muitos destinos trágicos daquelas práticas condicionadas de maneiras diversas. Por outro lado, não é desconhecido a frequente tentativa de colocar certas ideias como justificadoras de medidas que em nada ou quase nada de fato fornecem sustentação. Nada disso, entretanto, diminui a eventual potência que podem apresentar determinadas formações ideais em condições histórico-concretas.
Vale, pois, considerar que tal plano das ideias pode, entre outras coisas, preparar o terreno, cria as condições subjetivas para determinados direcionamentos da vida econômica da sociedade. Lukács (2020), por exemplo, capturou isso muito bem em seu estudo a respeito do papel que a filosofia alemã, de acentuação irracionalista, desempenhou na preparação do ambiente intelectual propício o desenvolvimento do movimento nazista na Alemanha. Não é que Nietzsche, por exemplo, tenha causado tal movimento, porém contribuiu com as tendências reacionárias mais tarde acionadas diante das condições sociais problemáticas apresentadas pelo estágio de desenvolvimento do capitalismo.
Coisas semelhantes poderiam ser ditas sobre expressões do pensamento econômico como o assim chamado “neoliberalismo” e seus efeitos sobre a vida econômica. Temos em mente, à guisa de exemplo, as decorrências habilitadoras das medidas de administração política da acumulação, nos anos de 1970, no sentido desregulamentar o fluxo de capitais de finanças como resposta à tendência declinante da taxa de lucro do capital produtivo (Guedes & Paço Cunha, 2021). O aumento do patrimônio financeiro das corporações produtivas cresceu exponencialmente nos anos seguintes, facultando a continuidade da distribuição de dividendos e sem afetar dramaticamente a aplicação de autofinanciamento do capital fixo. E isso, obviamente, não poderia ser realizado sem a mediação da superestrutura na figura do Estado, considerando também o contexto de crise da economia capitalista e a correlação entre as mais variadas forças, dos sindicatos ao jornalismo econômico, de think tanks a intelectuais atuantes. Não é mero acaso que precisamente nesse contexto foi crescente a difusão de teorias tais como a “maximização do valor” aos shareholders. O mesmo vale para aquela frequentada ideia, fonte de desgosto aos defensores da função social da propriedade privada, de que, segundo M. Friedman (1970/2007), a única função das corporações seria a realização de lucros1.
O contexto atual é prenhe de possibilidades à observação de parte do fenômeno em questão. Se, por um lado, a “política industrial” nunca saiu de cena – aliás vinha ganhando muita força com os programas nacionais orientados para o desenvolvimento tecnológico, inclusive mais recente sob a rubrica da chamada “quarta revolução industrial” -, por outro lado, ganha outras cores sob o direcionamento em muitos países do esforço estatal em “reindustrializar” suas economias. As ideias econômicas, tais como o keynesianismo, a chamada modern supply-side economics, a denominada “economia por missões” etc., são circulantes, inclusive no Brasil, e ajudam a preparar o terreno para determinadas ações direcionadas ao setor industrial, diminuindo os riscos envolvidos em uma transição verde. Em outras palavras, ajudam a criar condições favoráveis a uma administração política da acumulação por parte dos Estados que garantam as taxas de lucro dos setores privados diante das circunstâncias incertas de mudanças econômicas e climáticas. Essa tendência, de minorar os riscos do capital por mediação do Estado, não é, obviamente, recente.
Seguimos com pesquisa sobre o tema e esperamos trazer novidades em breve.
Referências
Friedman, M. (2007). The social responsibility of business is to increase its profits. In: Zimmerli, W.C., Holzinger, M., Richter, K. (eds) Corporate ethics and corporate governance. Springer, Berlin, Heidelberg. https://doi.org/10.1007/978-3-540-70818-6_14
Guedes, L. T. & Paço Cunha, E. (2021). Financiamento do capital fixo (1970-2012): dissolvendo o paradoxo aparente entre financeirização e autofinanciamento em contexto de queda da taxa de lucro. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 8(1), 16-54. https://rbeo.emnuvens.com.br/rbeo/article/view/394
Lukács, G. (2020). A destruição da razão. Instituto Lukács.
Paço Cunha, E. (2023). Problemas selecionados em determinação social do pensamento. Verinotio–Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, 28(1), 123-146. https://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/article/view/663
Wapshott, N. (2011). Keynes Hayek: the clash that defined modern economics. W. W. Norton.
Weiner, J. L. (1964). The Berle-Dodd dialogue on the concept of the corporation. Columbia Law Review, 64(8), 1458–1467. https://doi.org/10.2307/1120768
Notas
1 É uma discussão que também recebeu audiência nos anos de 1930, em certa medida fomentada pelo debate entre E. Merrick Dodd Jr. e A. Berle, que publicou em coautoria com G. Means o notório The modern corporation and private property de 1932. Para uma síntese da discussão, ver Weiner (1964). Para considerações sintéticas disponíveis online, mas com conclusões discutíveis, ver Everything Old is New Again—Reconsidering the Social Purpose of the Corporation. A entrada na Wikipedia pode ser também um bom começo.
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