Citação: Marx e a cientificidade da economia, segundo Lukács
“É certo que as obras econômicas do Marx maduro estão centradas coerentemente na cientificidade da economia, mas nada têm em comum com a concepção burguesa, segundo a qual a economia é mera ciência particular, na qual os chamados fenômenos econômicos puros são isolados do conjunto das inter-relações do ser social como totalidade e, depois, analisados nesse isolamento artificial, visando — eventualmente — relacionar de maneira abstrata o território assim formado com outros territórios isolados de modo igualmente artificial (o direito, a sociologia etc.). A economia marxiana, ao contrário, parte sempre da totalidade do ser social e volta a desembocar nessa totalidade. Como já expusemos, o tratamento central e, sob certos aspectos, frequentemente imanente dos fenômenos econômicos encontra seu fundamento no fato de que neles deve ser buscada e encontrada a força motriz, em última análise, decisiva do desenvolvimento social em seu conjunto”.
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“Só após ter assim demarcado com precisão as fronteiras em todas as direções é que se torna possível expor adequadamente os escritos econômicos de Marx em seu caráter ontológico. Eles são diretamente obra da ciência e não da filosofia. Mas seu espírito científico passou pela filosofia e jamais a abandonou, de modo que toda verificação de um fato e toda apreensão de um nexo, não são simplesmente fruto de uma elaboração crítica na perspectiva de uma correção factual imediata; ao contrário, partem daí para ir além, para investigar ininterruptamente toda factualidade na perspectiva do seu autêntico conteúdo de ser, de sua constituição ontológica. A ciência brota da vida, e na vida mesma - saibamos ou não, queiramos ou não - somos obrigados a nos comportar espontaneamente de modo ontológico. A transição para a cientificidade pode tornar mais consciente e mais crítica essa inevitável tendência da vida, mas pode também atenuá-la ou até mesmo fazê-la desaparecer. A economia marxiana está impregnada de um espírito científico que jamais renuncia a essa tomada de consciência e de visão crítica em sentido ontológico, acionando-as, muito antes, na verificação de todo fato, de toda conexão, como metro crítico permanentemente operante. Falando de modo bem geral, trata-se aqui, portanto, de uma cientificidade que não perde jamais o vínculo com a atitude ontologicamente espontânea da vida cotidiana; ao contrário, o que faz é depurá-la de forma crítica e desenvolvê-la, elaborando conscientemente as determinações ontológicas que estão necessariamente na base de qualquer ciência. E precisamente nesse ponto que ela se contrapõe a toda filosofia construtivista — em termos lógicos ou outros quaisquer. O repúdio crítico das falsas ontologias surgidas na filosofia, porém, não implica, de modo algum, que essa cientificidade assuma uma atitude antifilosófica. Pelo contrário. Trata-se de uma cooperação consciente e crítica da ontologia espontânea da vida cotidiana com a ontologia corretamente consciente em termos científicos e filosóficos”.
Lukács, Para uma ontologia do ser social, v. I, Boitempo, p. 291-293.