Comentário: “Novo irracionalismo”, Foucault e o pensamento econômico, por Elcemir Paço Cunha
Recentemente, J. B. Foster retomou A destruição da razão, de G. Lukács, para tecer considerações a respeito de um Novo Irracionalismo. É um artigo curto, muito interessante, e que será publicado em português pela Verinotio provavelmente em 2023 com autorização já firmada com Monthly Review.
Há uma passagem no artigo em que Foster coleciona vários motivos para hostilidades da “esquerda”:
In this dangerous and destructive climate of late imperialism, irrationalism has come to play a growing role in the constellation of thought. This initially took the relatively mild form of a deconstructive postmodernism and poststructuralism, which, in the work of thinkers like Jean-François Lyotard and Jacques Derrida, cast aside all grand historical narratives while embracing a philosophical antihumanism emanating principally from Heidegger. In contrast, today’s new philosophies of immanence—associated with posthumanism, vitalistic new materialism, actor-network theory, and object-oriented ontology—constitute a deeper irrationalism, represented by such putatively left figures as Gilles Deleuze, Félix Guattari, Bruno Latour, Jane Bennett, and Timothy Morton. These thinkers draw directly upon an irrationalist, antimodernist intellectual lineage going back to the reactionary antimodernism of Nietzsche, Bergson, and Heidegger. Lacanian-Hegelian philosopher Slavoj Žižek has ultimately taken sides with the antihumanist tradition stemming from left-Heideggerianism, generating in his work a carnival of irrationalism. All of these various tendencies are coupled with skepticism, nihilism, and a pessimistic, end-of-the-world outlook1.
Na passagem, Foucault está incluído de modo indireto. Não é nenhum segredo como o autor francês ecoou certa tendência irracionalista alemã, sobretudo nas figuras de Nietzsche e Heidegger, tecendo hipérboles2. Esse apontamento não é novidade, pelo menos não no Brasil. A tese de Mavi Rodrigues, Michel Foucault sem espelhos: um pensador proto pós-moderno, de 2006, é um exemplar importante. O Núcleo de Estudos de Irracionalismo Moderno também já insistiu nesse ponto.
Ninguém alimenta muitas dúvidas a respeito da influência de Foucault entre os intelectuais das universidades brasileiras. Suas marcas são visíveis inclusive no aporte metodológico para o estudo do pensamento econômico, além de arcabouço geral para explanação do liberalismo e do neoliberalismo3.
Certos aspectos da economia estiveram, de fato, no radar do filósofo francês e foi objeto de contestação. Um exemplo disso foi Pierre Vilar, em As palavras e as coisas no pensamento econômico, de 1967, cuja tradução foi recentemente publicada pela Revista Libertas. A tradução, realizada por R. V. Fortes, está acompanhada de uma apresentação que, se não liga diretamente Foucault às tendências irracionalistas, tais tendências ficam inteiramente apreensíveis tanto na posição renovadamente agnóstica quanto na submissão da história, especificamente no que tange ao sentido objetivo das Workhouses na trajetória do capitalismo, a um apagamento das causalidades materiais envolvidas:
Nesse sentido, creio não ser inoportuno referir aqui os “ajeitamentos” argumentativos, nos quais de maneira escamoteada, com artifícios capciosos, Foucault enquadra o surgimento das Workhouses inglesas do século XVII, como mais um episódio da chamada “grande internação”, como se tal evento histórico fizesse parte da atmosfera dos tempos, motivada pelo “grande medo” dos insensatos, ou se se preferirem, dos “poderes confusos de corrosão e horror” da loucura. Fora de qualquer dúvida, para Foucault, o clima da época justifica a referência às instituições inglesas, porém o que fica negligenciado por ele é o problema da origem social dos conflitos, isto é, das contradições sociais que culminaram na agudização do fenômeno do pauperismo no século XVII. Bastaria reportar ao famoso capítulo 24 de O capital, em que Marx trata da “A assim chamada acumulação primitiva” esclarecendo de maneira precisa, no contexto histórico de sua época a gênese das Workhouses. Trata-se, segundo Marx, da tentativa de equalizar o desequilíbrio provocado pela “vagabundagem”, pela pobreza generalizada oriunda da expropriação dos meios de subsistência dos servos, dos camponeses. É um fenômeno social com evidentes decorrências históricas, de natureza em nada idílica, marcada pela expulsão dos camponeses de suas terras, pela apropriação das terras sociais, pela exploração das colônias, pelo genocídio, pela emergência da escravidão como base da nova forma de enriquecimento que começava a se apresentar. Contudo, na obra de Foucault a causalidade dos fatos históricos desaparece e tudo se vê reduzido ao “grande medo”, à ameaça da loucura ao princípio da razão apregoada pela modernidade. “O classicismo inventou a internação” e a razão cumpre um papel decisivo nessa prática. A indiferenciação dos assim chamados “internados”–sejam eles, loucos, homossexuais, bandidos, vagabundos, doentes etc. –, é o artifício que encerra todo o fenômeno da época na mesma quadradura do rechaço condenatório promovido pela razão. (Fortes, 2023, p. 263-264)
Como decorrência a história é sacrificada no altar da episteme. A descontinuidade, a ênfase na estrutura discursiva que molda as ações e saberes de dadas épocas torna quaisquer causalidades ou legalidades tendenciais históricas meras sacralizações da racionalidade, na medida em que, para o filósofo francês, não existem legalidades ou continuidades na história. E ainda, toda tentativa de estabelecer nexos causais que explicam as tendências e diretrizes assumidas na trajetória da humanidade, são consideradas como ilação aleatória e totalizadora. (p. 264)
Novamente estamos diante do primado já referido acima: não há verdades, mas meras interpretações de interpretações. Porém, nesse caso, a licenciosidade hermenêutica se volta para o estabelecimento arbitrário de fatos; na ausência de dados, que se recolha fragmentos descontínuos da história para se construir a tese e argumentar a seu favor. (p. 264)
Não parece ser desimportante ou mero exercício intelectual considerar as influências de tais tendências irracionalistas. Caberia perguntar pela necessidade social dessas tendências, a missão social que vieram a cumprir, se efetivamente cumprem, isto é, que potência têm ao desaguarem no cotidiano da vida econômica para além dos muros universitários, porém, tendências renovadas e rearticuladas nas condições de crise persistente, das ameaças bélicas e ambientais presentes.
Referências
Fortes, R. V. (2023). “O evangelho segundo Foucault”. Apresentação à tradução do artigo: As palavras e as coisas no pensamento econômico (Pierre Vilar). Revista Libertas, v. 23, n. 1. https://periodicos.ufjf.br/index.php/libertas/article/view/41395
Notas
1 https://monthlyreview.org/2023/02/01/the-new-irrationalism/#:~:text=of%2Dthe%2Dworld-,outlook,-.
2 Ferry, L., & Renaut, A. (1988). Pensamento 68. São Paulo. Ensaio, 20.
3 https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-nova-razao-do-mundo-557, https://press.princeton.edu/books/paperback/9781935408543/undoing-the-demos, https://link.springer.com/book/9780230242616