De Luís Napoleão a Pablo Marçal: a importância do horizonte para o indivíduo, por Thiago Rezende
Uma vez mais, a esquerda que não rasga horizontes e a tragédia já cotidiana.
De Luís Napoleão a Pablo Marçal: a importância do horizonte para o indivíduo
Por Thiago Dutra Hollanda de Rezende
Imagem: Freepik
A tradição histórica deu origem à crença milagrosa dos camponeses franceses de que um homem chamado Napoleão lhes devolveria a glória perdida. E apareceu um indivíduo alegando ser esse homem por portar o nome de Napoleão, em decorrência da seguinte prescrição do Code Napoléon: “La recherche de la paternité est interdite” [A investigação da paternidade é interdita]. Após vinte anos de vagabundagem e uma série de aventuras grotescas, cumpre-se a saga e o homem se torna imperador dos franceses. A ideia fixa do sobrinho se torna realidade porque coincidiu com a ideia fixa da classe mais numerosa entre os franceses (Marx, 2011 [1852], p. 143).
Há cerca de um ano, este blog publicou, sob o título, “a esquerda sem garras”, a assertiva e atual constatação de J. Chasin para comentar a análise de Márcio Pochmann sobre a formação da “direita antissistema”. Um ano se passou e diante dos desafios postos das eleições municipais, a esquerda brasileira, de maneira geral, se assusta com o favoritismo de figuras reacionárias com discursos rasos e fantásticos ante planos de governos bem construídos coletivamente com o que de melhor a intelectualidade acadêmica e técnica progressista pode oferecer.
No texto de 2023, Pochmann argumenta como o progressismo perdeu a capacidade de oferecer horizontes de realizações coletivas ilimitadas em um momento histórico em que há uma busca crescente por gratificação individual e imediata. Sua análise também destaca o neoliberalismo, que teria surgido como uma resposta ao colapso do projeto de modernidade ocidental, contribuindo para a ascensão do neoconservadorismo. Desde então, a ênfase foi colocada na disciplina ética do trabalho e na diminuição do Estado de bem-estar social, favorecendo políticas que restauram tradições e valores conservadores. Surge, então, uma nova agenda, em vez de buscar realizações materiais ilimitadas, o foco passa a ser a preservação do status quo existente e a busca por certezas existenciais. Portanto, o neoconservadorismo e o neoliberalismo teriam surgido como respostas às falhas do projeto de modernidade ocidental.
Daí a correlação com a conclusão chasiniana, segundo a qual “quando a esquerda não rasga horizontes, nem infunde esperanças, a direita ocupa o espaço e draga as perspectivas: é então que a barbárie se transforma em tragédia cotidiana”. Esta citação é oriunda de seu ensaio publicado em 1989 intitulado “A sucessão na crise e a crise na esquerda”, na qual ele analisou os desafios da esquerda diante do período pós-ditatorial.
Destacamos aqui sua análise da figura de Collor de Melo, que depois sairia vencedor das eleições presidenciais de 1989. Naquele momento, Chasin observava que se a figura de um semidesconhecido vinha sendo o desaguadouro da insatisfação popular, é porque o aparato partidário então existente - seus programas e candidatos, suas atuações passadas e presentes - não correspondiam consistentemente à sensibilidade e às inclinações da maioria dos indivíduos.
Assim, ficam as grandes populações à mercê dos cantos de sereia, submetidas à mais bárbara exploração espiritual, tanto mais se as organizações partidárias que pretendem atuar a partir delas deixam o campo livre ou se mostram incapazes de as sensibilizar e esclarecer, por efeito de suas próprias falácias e debilidades. Os equívocos das massas desvalidas subentendem, pois, fraquezas e erros políticos maiores e mais graves - reais e ideais - das agremiações partidárias, muito em especial daqueles que se auto-intitulam de esquerda (Chasin, 1989, p. 83).
Havia uma desconexão entre o que os partidos ofereciam e o que as pessoas realmente precisavam ou desejavam. As ações passadas quanto as então atuais dos partidos políticos não atendiam adequadamente às expectativas da população, o que contribuiu para o desencanto e a busca por alternativas, mesmo que sejam as com maior potencial de danos aos interesses da classe trabalhadora.
Não é necessário muito esforço para relembrar que como a analogia Collor e Bolsonaro foi realizada repetidamente em 2018, especialmente a ideia do homem antissistema, “contra tudo que está aí”, era para muitos analistas uma reatualização da “caça aos marajás”. Ambas as eleições ocorreram em contextos de crise econômica e social e com alto grau de desconfiança nas instituições políticas. As campanhas de mídia atualizadas e a construção das imagens adequadas a cada tempo foram muito bem concretizadas, Collor como um jovem modernizador e enérgico, usando mistérios da computação e músculos exercitados, como registrou Chasin, enquanto Bolsonaro se projetou como um defensor da ordem e da moralidade, destacando seu perfil de homem do povo, vestindo camisas de qualquer clube de futebol em cenários de varais ao fundo a mesas de café humildes. Entretanto, apesar do cérebro coçar, não era a história se repetindo como qualquer tipo de gênero dramático, era a história se realizando em cada tempo, sob dadas condições de possibilidade.
À sua maneira, cada qual oferecia um horizonte de mudança, de ruptura com o presente e a necessidade de mudança radical, o que deveria ser a promessa de qualquer agente político interessado na não manutenção de uma realidade marcada pela desigualdade ruidosa, violências de diferentes ordens e desencanto com a ausência de horizontes para a grande maioria dos indivíduos.
Daí a conclusão de Chasin, quando a esquerda não consegue “rasgar horizontes” ou “infundir esperanças”, ela deixa um vácuo no campo político. Esse vácuo é então preenchido pela direita (ou extrema, se preferir), que não apenas ocupa o espaço, mas também draga as perspectivas, transformando a sociedade em uma tragédia cotidiana marcada pela barbárie. Em um presente público e privado indesejável para a maioria dos indivíduos, não surpreende o sucesso de candidatos que adotam discursos rasos, individualistas e anti-establishment. Daí que figuras, como Pablo Marçal, podem emergir como desaguadouros de insatisfação popular.
Chegamos a 2024, onde tem tido destaque midiático a eleição da cidade mais rica do país. Trata-se de um contexto em que a maioria das pessoas se sentem desamparadas e suas reações são mais imediatistas, refletindo o sofrimento cotidiano sem uma visão articulada de soluções globais e reais. Essa constatação não é nada original e nem de longe surpreende, mas ainda é necessário repisar este ponto, quando boa parte das análises progressistas ou à esquerda apontam para culpabilizar fake news, baixeza, armações e qualquer outra coisa tachada de fascismo e bolsonarismo como razões pelos potenciais fracassos eleitorais de candidatos de esquerda. Embora essas estratégias realmente tenham efeitos ao longo de pleitos, as razões de identificação de camadas do trabalho, especialmente as mais pobres, vão além de mero engano ou incapacidade de discernimento como acredita a esquerda mais certa de que pode tutelar “as massas”.
O proletariado, ou os mais oprimidos, para usar o termo mais afeito ao debate político progressista atual, são antes de tudo indivíduos. Indivíduos que tem vidas individuais. Dentro de um contexto de classe e exploração coletiva? Sim. Mas seus anseios, seus sonhos e seus perrengues cotidianos são na maior parte das vezes resolvidos e imaginados de maneira individual, como é característico de qualquer sociedade erigida por meio do modo de produção capitalista.
A vida cotidiana no capitalismo contemporâneo ganha diversos adjetivos para tentar captar sua essência, de capitalismo tardio a ultraneoliberalismo, os quais apontam para uma sociedade cada vez conformada pela retração estatal na proteção social, pelos direitos trabalhistas cada vez mais restritos, pelos vínculos sociais mais fragilizados, pela financeirização, pelas desigualdades crescentes e pelo esmorecimento da ideia de horizonte coletivo e compartilhado em cada consciência individual.
Cada vez mais, especialmente no caso de uma sufocante grande metrópole na periferia do capitalismo, o caminho individual aparece como uma realidade inevitável. Os trabalhadores são cada vez mais transformados em “empreendedores de si mesmos” (curiosamente a figura do MEI surge em um governo federal de “esquerda”), operando sem os direitos e proteções que tradicionalmente acompanhavam o emprego formal, já historicamente restrito na particularidade brasileira. Esse modelo, exemplificado explicitamente pela economia de aplicativos, promove um discurso de meritocracia e empreendedorismo individual, mas, na prática, deixa os trabalhadores à mercê das flutuações do mercado e sem garantias básicas.
Um Marçal consegue atrair apoio ao prometer uma forma de “salvação” pessoal e econômica, que é ao mesmo tempo espiritual e material. Isso ocorre em um cenário onde as soluções coletivas e estruturais são vistas como insuficientes ou inalcançáveis. A falha das organizações partidárias, especialmente da esquerda, em oferecer alternativas claras e sedutoras, deixa os indivíduos mais explorados vulneráveis a esses discursos reducionistas, que prometem soluções individuais para problemas coletivos.
A profusão do neopentecostalismo e da ideologia da prosperidade entre as camadas mais pobres reforça e legitima a ascensão de figuras políticas que se apresentam como salvadores individuais. Eles capitalizam sobre a fé e o desejo de prosperidade dos indivíduos, oferecendo uma narrativa que, embora atraente, desvia a atenção das questões estruturais que perpetuam a desigualdade e a precariedade. Por que para boa parte dos indivíduos que mais sentem os efeitos do atual estágio de degradação capitalista o desejo de prosperar e conquistar é mais relevante que o desejo de promover equidade e justiça? Como atacar esta questão sem culpabilizar os indivíduos como tolos ou apenas as máquinas de fake news? Sem querer dar respostas definitivas, um primeiro passo talvez seja oferecer um horizonte.
Luís Napoleão capitalizou o desejo por estabilidade e glória nacional, Collor oferecia uma mudança rápida e radical contra a corrupção e a hiperinflação, Bolsonaro enfrentaria o sistema corrupto para trazer ordem e segurança e Marçal enfatiza o mérito pessoal e soluções individuais, alinhando-se com a demanda por mudança e uma ruptura com o sistema político estabelecido, incapaz de dar respostas aos anseios e desejos dos indivíduos com pressa e sem tempo a perder numa grande cidade. O que a esquerda pode oferecer? Qual o horizonte oferecido para cada indivíduo se identificar e decidir lutar por ele?