Do estímulo ao atraso à resignação da barbárie, por Leandro Theodoro Guedes
O papel de expectador ativo do Estado brasileiro tem mantido um setor altamente concentrado em cômoda posição
Do estímulo ao atraso à resignação da barbárie
Por Leandro Theodoro Guedes (@theodoroguedes93)
O setor automotivo presencia uma importante transição tecnológica que traz uma série de implicações econômicas. A iminente transição energética abre espaço para veículos elétricos e também coloca em cena uma contenda interna no setor no Brasil. Trata-se de uma disputa entre as multinacionais tradicionais fabricantes de veículos e as emergentes produtoras de elétricos, especialmente as chinesas. A ANFAVEA (Associação Nacional dos Veículos Automotores), que representa os interesses das montadoras tradicionais tem pressionado o governo para que haja aumento da alíquota de imposto de importação para veículos elétricos e híbridos estrangeiros, no intuito de revigorar o velho protecionismo, reduzindo espaço no mercado brasileiro para os veículos produzidos pelas novas concorrentes. A justificativa é de que a entrada dos importados compromete o investimento de longo prazo no setor, o que poderia também ameaçar toda a cadeia de produção, empregos e fatores que tais.
O apoio nas escoras estatais não é exatamente uma novidade no setor automotivo. Políticas de subsídio, isenções tributárias e outras medidas, incluindo aí a ostensividade no combate ao renascimento do sindicalismo nos anos 1970 no ABC Paulista, tem atravessado diferentes governos há pelo menos 70 anos. Do lado do Estado, a expectativa sempre foi no protagonismo das multinacionais para a dinamização de um setor que envolve numerosa cadeia de insumos e a geração de muitos empregos diretos e indiretos. Questionável é o resultado dessa relação, uma vez que o Brasil nunca esteve entre os países tecnologicamente dominantes e sequer construiu sua própria indústria, mantendo-se refém das multinacionais que tratam o Brasil como mercado secundário. Ao mesmo tempo, essas políticas nunca garantiram aumento sustentável da produtividade ou manutenção e crescimento de empregos.
A título de exemplo, apenas nos últimos cinco anos, o Estado brasileiro cedeu mais de 46,4 bilhões de reais em valores correntes em renúncias fiscais para as empresas produtoras de autoveículos, de acordo com dados do Portal da Transparência. Em contrapartida, segundo dados do Anuário da ANFAVEA, durante esse mesmo período, o nível de emprego reduziu de 101 para 99 mil, tudo isso em meio a layoffs (suspensão dos contratos de trabalho) e outras medidas que visam reduzir os custos com a força de trabalho. Também está estagnado o nível de produção, uma vez que foram produzidos cerca de 2 milhões e 300 mil veículos em 2023, número semelhante a 2004, quase duas décadas atrás.
Em outros trabalhos, pudemos mostrar que além de ser um setor complexo e, por isso, mais resistente à automação dos processos produtivos, o setor de autoveículos no Brasil também é historicamente retardatário no que diz respeito à base técnica, tendo adotado muito tardiamente a robótica e, ainda assim, de forma restrita, dado o próprio nível salarial rebaixado.
O papel de expectador ativo do Estado brasileiro tem mantido um setor altamente concentrado em cômoda posição conservando seus ganhos sem comprometer-se com os riscos dos investimentos produtivos.
A transição energética que impulsiona a produção de veículos elétricos resultou em novas empresas no setor. Especialmente, as montadoras chinesas ganham espaço no mercado mundial e causam problemas para as grandes multinacionais, inclusive na Europa. Tem sido destacado como essas empresas chinesas conseguem estabelecer custos de produção mais baixos, o que envolve tanto o processo produtivo como a logística, e é ainda favorecida pelo domínio da tecnologia para produção de baterias. Alguns efeitos significativos são notados, como o encerramento de operações em fábricas de montadoras em seus próprios países como a Volkswagen na Alemanha. A resposta para a retomada da liderança do setor se expressa com o clamor dessas multinacionais em seus países de origem na Europa e Estados Unidos pelas mesmas medidas protecionistas reclamadas no Brasil. Os recentes anúncios de barreiras tarifárias impostas pela União Europeia e pelos Estados Unidos dão eco a este clamor, o que não garante que os resultados almejados sejam logrados, mas coloca em marcha a velha disputa pelas maiores fatias do mercado.
No Brasil, embora a competição não tenha ocasionado os mesmos efeitos notados na Europa, ainda que seja evidente um processo de encolhimento do setor e fechamento de fábricas por outros motivos, a entrada das novas multinacionais chinesas no mercado nacional já acontece por meio dos importados e a fabricação nacionalizada é questão tempo. Não obstante, isso não significa necessariamente a melhoria ou a sinalização de uma enfim renovação e reaparelhamento deste combalido setor.
Nova fábrica a ser construída na Bahia da montadora BYD, que também goza de fartos incentivos públicos na tentativa de inserir o país na nova tendência, recentemente foi alvo de denúncias de condições extremamente precárias de trabalho nas obras. Entretanto, não é de se assustar que a ponta tecnológica do setor se apodere das práticas mais bárbaras exploração do trabalho, afinal a liderança em custos é um meio essencial para que a empresa se mantenha competitiva.
O setor de autoveículos, por muitas vezes alardeado como a simbolização da modernidade, configura-se historicamente como a imagem do capitalismo atrófico brasileiro. Uma relação de inteira subserviência de um Estado enfraquecido a um setor acomodado que escolhe avançar sobre a classe trabalhadora a escalar em direção à competição mundial. Ademais, trata-se de uma relação na qual as políticas escolhidas alimentam o parasitismo típico da subordinação, pois o protecionismo ensaiado no Brasil sequer é capaz de impedir a fuga de capitais. Como velha novidade, a mesma subserviência oferecida a outras frações do mesmo setor derruba os obstáculos para o avanço sobre os trabalhadores. A necessidade de controle das grandes corporações que já foi comentada neste blog parece assim, no setor automotivo, impossibilitada não pela vontade, mas pela própria anemia típica de um Estado que coordena o capital atrófico e rendido.