O complexo arranjo por trás da paralisia política, por Thiago Martins Jorge
Fatos muito conhecidos podem ter causas completamente desconhecidas
O complexo arranjo por trás da paralisia política
Por Thiago Martins Jorge (@ThiagoMarJor)
A afirmação de que os agentes políticos jamais cumprem (pelo menos inteiramente) os compromissos assumidos em época de campanha talvez seja crítica que menos enfrenta resistência quando o assunto é política. Dos bares à imprensa, essa crítica assume diferentes formas, mas o seu conteúdo (incluindo a investigação das suas causas) permanece o mesmo.
Bastante aceita também é a ideia de que tal desvio — entre aquilo que é prometido e aquilo que é realizado — não guarda especial aderência ao espectro ideológico dos agentes políticos. Mais recentemente, reforçando tal argumento, evoca-se a figura de Bolsonaro: um candidato eleito por meio de uma plataforma ideológica bastante radical, mas que teria se distanciado de parte importante daquilo que havia sido propagandeado durante sua campanha em 2018.
Sem discordarmos inteiramente desse senso comum, devemos, no entanto, advertir que há variáveis importantes que não recebem a devida atenção e que desempenham papel fundamental nesse jogo. O exemplo de Bolsonaro, inclusive, joga luz sobre onde podemos encontrar o maior e também o menor distanciamento entre o planejado (prometido em campanha) e o realizado.
Ao longo dos quatro anos do seu governo, não testemunhamos nenhuma mudança abrupta no conteúdo ideológico dos seus discursos. O discurso que o conduziu à presidência seguiu presente nos seus anos de governo e inclusive foi tragicamente visto e sentido na gestão calamitosa dos esforços de enfrentamento à pandemia.
O que talvez tenha surpreendido é que no terreno da economia é possível identificar continuidades estarrecedoras não só em relação à gestão anterior (movimentada pelo impeachment de Dilma Rousseff), mas também em relação à atual gestão (eleita com um forte discurso anti-Bolsonaro). Nessa direção, poderíamos, por exemplo, lembrar do caso do Auxílio Emergencial e também das alterações “formalísticas” entre Bolsa Família e Auxílio Brasil (inclusive na insuficiência desses programas provocarem uma mudança mais importante na estrutura da sociedade brasileira).
Em outras palavras, podemos dizer que, hoje, os embates ideológicos seguem tão acirrados como foram nos últimos anos, mas quando nos debruçamos sobre o direcionamento da política econômica, os embates parecem ficar reservados exclusivamente à política monetária, que é definida pelo Banco Central, e talvez — para sermos justos — a uma tímida questão quantitativa quanto a direcionamentos orçamentários e tributários.
Quanto a mais marcante delas, a questão monetária, poderíamos, entretanto, indicar que ao longo das duas primeiras gestões do presidente Lula, há períodos em que a condução do Banco Central seguiu um direcionamento muito similar ao direcionamento atual de Campos Neto. Ou seja, mesmo onde os embates parecem hoje mais fortes, não seria de todo forçoso imaginar que, se o gestor político no leme do Banco Central estivesse ideologicamente mais próximo ao presidente Lula, as diferenças na atuação concreta não seriam tão marcantes.
Fica claro, portanto, que o discurso mais ideológico pode ser mantido principalmente quando ele é praticamente vazio de conteúdo concreto (mas é capaz de gerar engajamento nas redes sociais), já quando esse discurso deve ser acompanhado de medidas concretas, a tendência é que ele perca força na medida em que a impotência em realizar essas coisas se manifeste. E é sobre essa impotência que pouca atenção é conferida.
Nesse momento, por exemplo, talvez um dos casos que melhor possa elucidar essa dinâmica venha do campo da política industrial. E é, portanto, sobre ele que vamos nos debruçar mais atentamente nos próximos parágrafos.
O fato de que a indústria brasileira atravessa um longo período de decadência é pouco contestado mesmo pelos agentes da própria indústria. Um pouco mais controverso, mas ainda assim bastante aceito, é a alegação de que a recuperação da indústria seria um movimento decisivo para a retomada da economia brasileira como um todo. E esse fato não passou desapercebido pelos formuladores do programa eleitoral do presidente Lula.
Na reta final de sua campanha, já acompanhado do atual vice-presidente Geraldo Alckmin, Lula adotou um discurso bastante alinhado ao projeto de recuperação da “indústria nacional”. Foi feito inclusive um esforço em conquistar o apoio do candidato (já derrotado) Ciro Gomes, que se colocava como um grande defensor de um projeto brasileiro de neoindustrialização.
Um processo de neoindustrialização, no entanto, não é algo que demande somente boa-vontade e discursos engajados. É necessário também a realização de massivos investimentos, que por sua vez demandam um nada desprezível espaço orçamentário e, portanto, demandam que essa boa-vontade e engajamento — manifestada por Lula e Alckmin — seja compartilhada também pelos parlamentares.
Nos primeiros meses de governo, ainda com o discurso num tom mais elevado, o governo Lula anunciou a criação do programa Nova Indústria Brasil. Alguns meses mais tarde, já alguns tons abaixo, foi apresentado o plano de ação que deve conduzir a implantação de tal programa. Hoje, aproximadamente seis meses após o lançamento do plano de ação, mais um pouco da energia, que poderia ser utilizada para impulsionar o projeto, parece ter ou se dissipado ou ter sido canalizada para outras batalhas.
Apesar disso, na análise do próprio plano de ação, já ficava claro que a boa-vontade não era compartilhada pelos parlamentares e que, portanto, os investimentos necessários não seriam feitos. Em outras palavras, ainda que o plano de ação apresentasse metas e projetos ambiciosos, as cifras indicadas ficavam muito aquém do que seria minimamente concebível para que tais ações lograssem resultados destacáveis (para uma análise mais detida sobre este ponto, já publicamos este texto aqui).
Paralelamente a isso, vem demandando um senso de urgência muito maior (dissipando, inclusive, a energia do governo) o eterno problema do controle das contas públicas. Antes de indicarmos as raízes desse problema, devemos ressaltar a sua “eterna” urgência. Esse mesmo senso de urgência, que vemos hoje, já estava presente na gestão de Bolsonaro, na gestão de Temer e também nas gestões anteriores de Lula e de Dilma Rousseff. Quanto a esses últimos, ainda que a história contada hoje busque ofuscar os fatos, podemos relembrar que agentes do mercado financeiro foram constantemente alçados a posições estratégicas no governo, justamente no sentido de demonstrar o compromisso dessas gestões com controle das contas públicas.
O ponto decisivo, no entanto, é que a priorização do controle das contas públicas (em detrimento de política industrial, por exemplo) não é resultado de uma escolha racional-gerencial, ainda que seja apresentada como tal. Do ponto de vista gerencial — e ignorando, por um momento, as peculiaridades da atuação estatal (o que inclusive é bastante usual entre os defensores do ajuste fiscal) — o controle das despesas é tão relevante quanto à criação de novas receitas. Se minhas despesas estão na casa R$ 100 e minhas receitas na casa de R$ 120, eu tenho um lucro módico de R$ 20. Se minhas despesas estão na casa de R$ 1.000.000 e minhas receitas na casa de R$ 1.200.000, eu tenho um lucro de R$ 200.000. Ou seja, ainda que mantida a mesma proporção, saltamos para um cenário muito mais favorável.
Longe de revolucionar o pensamento administrativo, o fato acima é elemento basilar em qualquer planejamento empresarial minimamente racional. É tão reconhecido quanto aceito o fato de que, em não raras ocasiões, a ampliação de receitas envolve, antecipadamente, a realização de investimentos (os quais, de uma forma ou de outra, demandam dispêndios financeiros na proporção da ambição do projeto). Também é reconhecido e aceito o fato de que a realização de investimentos envolve incertezas e, por isso, um planejamento meticuloso é igualmente relevante.
Dentro dessa linha argumentativa, deveria causar espanto, portanto, o fato de que investimentos módicos, a serem realizados pelo Estado — como aqueles que devem ser realizados dentro do Nova Indústria Brasil —, sejam acompanhados de planos de ação, critérios de priorização e outras ferramentas administrativas; porém, ao mesmo tempo, a definição da taxa básica de juros, que impacta diretamente no nível das despesas, é realizada a portas fechadas e apresentando critérios, no mínimo, controversos. Ou seja, enquanto dispêndios menores devem passar por todas as etapas de um bom planejamento financeiro, a definição de uma variável chave para a saúde das contas públicas (a taxa básica de juros) é uma decisão política sem ressalvas ornamentais.
Para um observador isento, fica claro que o que separa essas duas coisas não é uma racionalidade administrativa, mas sim questões próprias à política. O que, por outro lado, talvez não fique imediatamente claro é o que mobilizaria tais esforços políticos e os conduziriam a tratamentos tão diferenciados.
O trabalho em elucidar, em termos mais concretos, as reais raízes extra-políticas dos esforços políticos, ainda deve envolver esforços de não poucos pesquisadores. Contudo, já há algum acúmulo de evidências quanto a pontos bastante relevantes e, a partir deles, podemos fazer algumas breves indicações.
Podemos começar indicando que o capital constituído em território brasileiro foi em imensa parcela gerado e agigantado pelas receitas da atividade agropecuária. Isso, naturalmente, confere grande poder de mobilização política aos agentes empresarias do agronegócio.
Nessa mesma linha, na medida em que as receitas cresceram e a riqueza ficou concentrada em poucas mãos, bancos e instituições financeiras tornaram-se tão (ou até mais) capazes de mobilizar recursos quanto os agentes do agronegócio.
Desse modo, temos, de um lado do tabuleiro, dois agentes altamente empoderados emparelhados com agentes empresariais enfraquecidos (e toda a população que demanda serviços públicos); do outro lado, o Estado, com o seu poder de impor restrições para atividades econômicas e também capaz de mobilizar e canalizar recursos massivos, seja para investimentos, seja para programas sociais. Diante disso, os agentes econômicos correm em busca das maiores vantagens e fatias do orçamento público; porém, poucos podem competir, em pé de igualdade, com o agronegócio e com o capital financeiro.
Analisando a distribuição do orçamento federal é inegável que grandes parcelas do orçamento escorrem quase que diretamente aos bolsos desses dois agentes. O plano Safra (programa de crédito para o agronegócio), por exemplo, deve mobilizar pelo menos R$ 260 bilhões até o final de 2025¹, enquanto o serviço da dívida pública (turbinado pelas altas taxas de juros) deve mobilizar quase R$ 340 bilhões só em 2024. Ou seja, estamos falando de recursos que, quase na íntegra, são canalizados diretamente para o agronegócio e para o capital financeiro.
Enquanto isso, o Novo PAC Saúde prevê investimentos módicos, na casa de R$ 30 bilhões, até 2026, já as linhas de crédito apresentadas dentro do plano de ação do Nova Indústria Brasil não chegam, individualmente, nem à casa dos bilhões e o Programa de Mobilidade Verde e Inovação (para empresas com investimentos em P&D no setor de mobilidade) prevê incentivos fiscais da casa de R$3 bilhões ao ano. E mesmo o Bolsa Família, provavelmente o programa social mais ambicioso da história recente do Brasil, em 2024, deve ficar na casa R$ 170 bilhões.
Com esses números em tela, e caso ainda reste dúvidas quanto a uma possível racionalidade administrativa que explicaria o tratamento diferenciado, poderíamos provocativamente questionar, do ponto de vista estratégico, o que faria maior sentido: canalizar maiores recursos para o agronegócio, sabendo que se trata de um setor já consolidado, que gera proporcionalmente poucos empregos e que demanda pouco desenvolvimento técnico-científico; ou faria mais sentido canalizar maiores recursos para o desenvolvimento da indústria e de serviços de maior complexidade (esses últimos, geradores de mais e melhores postos de trabalho)?
Fato é que, considerando exclusivamente a racionalidade administrativa, as decisões e urgências política não se sustentam; e, não coincidentemente, é do interesse tanto do par, agro-finanças, quanto dos agentes políticos que pautas relativamente vazias em conteúdo assumam o palco principal. Isso vale para questões culturais e de costumes, mas se aplica especialmente para questões econômicas. Já indicamos (aqui) que a tão propagandeada Reforma Tributária, talvez a decisão econômica mais alardeada dos últimos anos, ficou muito aquém do que foi prometido.
Enquanto isso, o orçamento público é canalizado (drenado) para o agronegócio e para as finanças (sob a chancela do controle das contas públicas) e, desse modo, qualquer programa de governo minimamente ambicioso precisa se contentar com a mobilização de recursos insuficientes para dar efetividade aos seus projetos. E todo esse complexo arranjo é sintetizado, pelo senso comum, pela incapacidade de gestores políticos darem efetividade para aquilo que foi propagandeado em período de campanha eleitoral.
Devemos, finalmente, indicar que o reconhecimento desse complexo arranjo não deve ser encarado como um convite para o imobilismo. Como já indicamos neste espaço, os obstáculos são muitos e o poder em contorná-los é reduzido, no entanto, agir é urgente.
¹ A mobilização desse valor passa pelo Banco do Brasil, o que, para fins comparativos aqui propostos, não altera as relações, uma vez que os investimentos e concessão de crédito para o Nova Indústria Brasil também devem ser intermediados pelos bancos públicos.