O marxismo é inútil?
Há uma ideia muito repetida, por muitos detratores, de que o marxismo seria inútil do ponto de vista das recomendações orientadoras à regulação da economia capitalista. Isso é admitido inclusive entre muitos marxistas.
Diferentemente das tendências keynesianas, desenvolvimentistas, neoclássicas etc., o caráter revolucionário do marxismo o impediria de enriquecer o estoque de ideias voltadas a acomodar os problemas da economia capitalista no aqui e agora, em seu sentido reformador. Não teria contribuições para sugerir ajustamentos pontuais que resultassem em pleno emprego, melhoria das rendas, contenção das crises, ou mesmo medidas reguladoras das formas mais irracionais do capital, tais como a do capital fictício. Mesmo para o setor produtivo não haveria muito o que sugerir com o fito de melhorar as condições de trabalho, a produtividade e as remunerações.
Seria mesmo possível colecionar inúmeros exemplos da inaptidão do marxismo para lubrificar e lustrar as engrenagens da economia capitalista. Os sumários dos livros-texto de macroeconomia e economia industrial aglutinados seriam ilustrativos disso.
Pois bem, sabendo que não está colocado qualquer mandato revolucionário, isto é, qualquer linha de horizonte de avanço, à frente – para ser redundante; sabendo ainda que o marxismo é uma ideologia proletária de aspiração científica, porém, pouco influente nos dias correntes, não há nada nele que não possa ser apresentado no sentido do que fazer diante das “falhas” da economia capitalista?
A primeira questão importante é ter clareza de que o marxismo está interessado, enquanto ciência, no estudo do funcionamento da economia capitalista, de sua lógica fundamental e legalidades de movimento, o que inclui o conhecimento sobre os mecanismos de coordenação dessa economia. Desse ângulo, compartilha do impulso de outras correntes em estabelecer o conhecimento acerca da coisa investigada, porém vai mais além do nível superficial da realidade no qual estacionam as tendências ocupadas da manipulação daqueles mecanismos. O marxismo não está interessado em conhecimento para o desenvolvimento de tecnologia dessa coordenação.
Os estudos acumulados nessa tradição, entretanto, são capazes de apontar certas condições gerais mais favoráveis, sobretudo à classe dos trabalhadores que acomoda a maioria esmagadora das pessoas ainda que contrariamente às suas subjetividades operantes. No limite, está em foco sempre a diferença entre a “luta de guerrilha”, diária e cotidiana acerca das melhores condições, de um lado, e, de outro, a superação dos causalidades estruturais que não se colocam diretamente como objetos dessa mesma luta.
É o que Marx já havia identificado em seus comentários de 1865 durante reuniões do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. O então tema do debate, objetivado em Salário, preço e lucro, dizia respeito a uma suposta causalidade entre a elevação dos salários e o aumento nos preços das mercadorias. Ao longo de suas considerações, colecionou provas históricas das oscilações desses fatores (salários e preços) que demonstraram que, ao contrário da causalidade suposta, uma “alta geral da taxa de salários acarretaria uma baixa da taxa geral de lucro, mas não afetaria, em linhas gerais, os preços das mercadorias” (Marx, 1982, p. 185). Também restou demonstrado que a “tendência geral da produção capitalista não é para elevar o padrão médio de salários, mas para reduzi-lo” (idem). Nesse sentido, a organização política dos trabalhadores poderia ter em seu programa reivindicações para o aumento dos salários sem o temor de que isso provocasse uma disparada nos preços. Nesse ponto, contudo, Marx introduziu a ressalva que igualmente decorre do acúmulo da ciência quando vocacionada a ir à raiz das questões, abaixo da superfície em que se manifestam os efeitos:
Ao mesmo tempo, e ainda abstraindo totalmente a escravização geral que o sistema do salariado implica, a classe operária não deve exagerar a seus próprios olhos o resultado final destas lutas diárias. Não deve esquecer-se de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos; que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo mudar de direção; que aplica paliativos, mas não cura a enfermidade. Não deve, portanto, deixar-se absorver exclusivamente por essas inevitáveis lutas de guerrilhas, provocadas continuamente pelos abusos incessantes do capital ou pelas flutuações do mercado. A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõe, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez do lema conservador de: “Um salário justo por uma jornada de trabalho justa!”, deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária: “Abolição do sistema de trabalho assalariado!”. (…). Os sindicatos trabalham bem como centro de resistência contra as usurpações do capital. Falham em alguns casos, por usar pouco inteligentemente a sua força. Mas, são deficientes, de modo geral, por se limitarem a uma luta de guerrilhas contra os efeitos do sistema existente, em lugar de ao mesmo tempo se esforçarem para mudá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do sistema de trabalho assalariado. (Marx, 1982, p. 184-185)
O conhecimento obtido acerca das causas fundamentais possibilita a compreensão de que a variação dos salários e preços não afeta necessariamente a natureza das relações sociais de produção que estão na base desses fatores, isto é, relações que estão abaixo das camadas mais superficiais da realidade. Na verdade, tais fatores (salários e preços) são expressões, formas dessas relações históricas e particulares, por isso, sociais e transitórias. A variação desses fatores, inclusive quando resulta da manipulação extraeconômica por meio do Estado, atende à administração da economia capitalista que, em última instância, está calcada naquelas relações sociais de produção essenciais. Por esse motivo, é forçoso reconhecer que:
O aumento do preço do trabalho é confinado, portanto, dentro dos limites que não só deixam intactos os fundamentos do sistema capitalista, mas asseguram sua reprodução em escala cada vez maior. Na realidade, portanto, a lei da acumulação capitalista, mistificada numa lei da natureza, expressa apenas que a natureza dessa acumulação exclui toda a diminuição no grau de exploração do trabalho ou toda elevação do preço do trabalho que possa ameaçar seriamente a reprodução constante da relação capitalista, sua reprodução em escala sempre ampliada. (Marx, 2013, p. 697)
A administração política da economia capitalista, pois, tem por um de seus mais centrais alvos a regulação extraeconômica dos salários dentro de tais limites e em velocidades mais ou menos adequadas quando os mecanismos reativos puramente econômicos falham ou tardam, isto é, quando os supostos automatismos de mercado não funcionam por conta própria. As políticas econômicas e legislações trabalhistas são, como se sabe, instrumentos de primeira ordem nesse território, incluindo o emprego da violência direta para disciplinar as reivindicações trabalhistas.
O conhecimento a respeito do funcionamento do modo de produção capitalista facultou ao marxismo identificar certas circunstâncias mais favoráveis às classes dominadas e isso ainda dentro dos limites da economia capitalista. Trata-se do entrelaçamento entre preço da força de trabalho (salário) e acumulação capitalista (valorização do capital) em que, como sabemos, opera sobre a legalidade absoluta de “produção de mais-valor, ou criação de excedente” (Marx, 2013, p. 695). Esse entrelaçamento revela que o “aumento do preço do trabalho, que decorre da acumulação de capital, significa apenas que, na realidade, o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o trabalhador forjou para si mesmo permitem torná-los menos constringentes” (idem).
Em síntese possível, as condições mais favoráveis são aquelas nas quais a expansão da acumulação do capital é seguida por ganhos salariais reais, porém, em menor velocidade do que a elevação da produtividade do trabalho (Shaikh, 2018), pelo menos até que uma crise (superprodução, financeira, comercial etc.) solape as bases dessas circunstâncias. E isso porque o conhecimento acumulado na tradição sugere que as medidas administrativas voltadas à regulação política da economia podem apresentar eficácia que, no entanto, está subordinada à temporalidade do próprio movimento objetivo que as tornam obsoletas ou impotentes (Mészáros, 2002). Por que? Porque a produção do capital tem nele mesmo obstáculos à sua contínua expansão, uma vez que “sua produção se move em contradições que constantemente têm de ser superadas, mas que são também constantemente postas” (Marx, 2011, p. 334). A superação e renovação dessas contradições não ocorre sem a própria administração da economia por médio do Estado.
Ocorre, porém, que são questões muito diferentes 1) saber quais são tais condições mais favoráveis, 2) administrar politicamente tais condições de modo bem-sucedido ou não por médio do aparato estatal e 3) verter tais condições em explícito programa político, procurando, nessa última direção, convencer inteiras cadeias de classes e camadas sociais a suportarem mesmo seus “grilhões de ouro” menos constringentes ainda que pesados. No limite, está aquilo que não poderia ser esquecido em 1865 e que ecoa aos nossos dias: a diferença entre as causas e os efeitos, entre as relações sociais de produção e seus modos de expressão.
Aqui fica muito nítida a distinção entre a tradição marxista, que vai à raiz dos problemas, e outras tendências que não são inibidas pelas contraditoriedades internas das questões acima numeradas. Mesmo porque, para tais tendências, o segredo a ser revelado está em descobrir ou inventar medidas de administração das mais fundantes contradições da economia capitalista sem, com isso, nelas tropeçar. E isso ao passo que sustentam a missão social de direcionar os conflitos para longe da conclusão de que os problemas identificados decorrem da própria natureza histórico-particular das relações sociais de produção capitalistas, procurando convencer longas cadeias de classes de que é plenamente viável, uma vez identificado o método supostamente correto, administrar indefinidamente as contradições por meio das quais o próprio modo de produção se move, supera e repõe.
As coisas anteriormente ditas sobre os salários e preços podem ser estendidas, guardadas as especificidades, a outras questões tais como aquelas coisas óbvias às quais se agarram com alguma frequência as “boas almas”. É indiscutível que ambiente salutar de trabalho é inegociável, que o adoecimento físico e mental é um problema rotineiro e inaceitável etc. Então as medidas direcionadas a combater tais problemas não estão em debate. Não é nem mesmo necessária uma ciência para constatar a existência desses problemas e mobilizar busca por medidas administrativas e jurídicas que aplaquem tais circunstâncias. São questões empíricas, mas também de guerrilha uma vez que trabalhadores e suas diferentes camadas, além daquelas que aderem às suas causas e que se encontram no plano estatal, postam-se rotineiramente em oposição a tais tendências do próprio capital.
A função do marxismo e sua aspiração científica é ir além do ponto em que estacionam as tendências manipulativas e aquelas “boas almas”, é revelar os nexos entre as relações sociais ao fundo e suas maneiras de expressão. Por isso, o marxismo passa por inútil e, de fato, o é a certos interesses preponderantes, mas de modo algum ao anseio de conhecer o funcionamento objetivo da economia capitalista e ao reconhecimento do papel das medidas de administração nesse processo. Para ele, grilhões de ouro continuam a ser grilhões.
Referências
Marx, K. (1982). Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes: a economia vulgar. Os Economistas. São Paulo: Abril.
Marx, K. (2011). Grundrisse. São Paulo: Boitempo.
Marx, K. (2013). O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo.
Mészáros, I. (2002). Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo.
Shaikh, A. Paths to development. Coyuntura y Desarrollo, Foundation for Research on Economic Development (FIDE), 40th Anniversary Issue, 2018. https://www.anwarshaikhecon.org/sortable/images/docs/publications/development/2018/Path_to_development_FIDE_article_Shaikh_2018.pdf