O PAC, a neoindustrialização e as capacidades de administração política, por Elcemir Paço Cunha
Na semana de lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC 2023, com expectativa de investimento na casa do trilhão, comentários, de liberais críticos ao governo, guardam entre si elementos em comum ainda que nem todos fossem dirigidos ao PAC em si. Mesmo certa ala desenvolvimentista do espectro dos comentários retém tais elementos comuns. Todos eles, cada a um ao seu modo, indicam a questão das capacidades administrativo-políticas do Estado brasileiro diante de tarefas cruciais.
Armínio Fraga chamou a atenção para o esforço praticamente inexistente diante da necessidade de controle das despesas. Demétrio Magnoli escreveu sobre as graves deficiências da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, entre elas o fato de que o Ministério da Saúde “não faz acompanhamento periódico de resultados”. Marcos Lisboa recuperou as experiências do Porto Digital e do agronegócio para destacar que esses “casos têm em comum mecanismos sofisticados para incentivar a inovação tecnológica e a formação de gente para resolver problemas e aumentar a produtividade”. Diante disso, seria para ele fundamental “Documentar as experiências bem-sucedidas”, pois podem “contribuir para evitar repetir os erros tão frequentes no desenho da nossa típica política industrial, que distribui subsídios e proteções de roldão a empresas locais, como se isso fosse suficiente para garantir o desenvolvimento”. Pedro Malan escreveu que a “contribuição do novo PAC para o Brasil advirá (…) da seletividade, gestão efetiva e avaliação de resultados sobre os níveis e a eficácia do investimento público e privado, para assegurar o crescimento sustentável do emprego e da renda”.
Devemos incluir o comentário de Paulo Kliass, muito menos hostil de partida às inclinações gerais do atual governo, mas que guarda algo também em comum. Focalizando a especificidade do PAC, Kliass considerou o seu papel estratégico voltado a um “novo ciclo de desenvolvimento social e econômico”, ressalvando que os montantes destinados parecem não ser integralmente capazes de suprir as reais necessidades envolvidas. O destaque fica com a consideração segundo a qual falta ainda, tangente ao programa, a “vontade política expressa de postular claramente pela recuperação do protagonismo do Estado no processo econômico, estabelecendo prioridades e formulando programas estratégicos de médio e longo prazos”.
Entre tais considerações diferentes, sobressaltam-se pelo menos dois elementos importantes que são, de certa forma, compartilhados.
Primeiro, nenhuma das considerações parece discordar das funções necessárias que o Estado desempenha na dinâmica econômica – ainda que a medida disso seja sempre o ponto da questão. A realidade já se encarregou de provar que essa dinâmica depende da atuação do Estado assim como este depende daquele dinamismo para efeito de sua saúde fiscal e legitimidade social. É uma relação estrutural, cujas tendências variam também em razão do governo. Nem sempre essa relação rende bons frutos, menos ainda resultados duradouros, na medida mesma de que se trata de algo em movimento, complexo, requerendo capacidades administrativas e políticas contingentes diante das correlações de forças, condições e tendências econômicas existentes.
O PAC e a nova política industrial, por exemplo, estão inclusas nessa atuação diante da dinâmica econômica. É uma aposta que, por exemplo, aproxima Brasil e Estados Unidos, guardadas as diferenças. Tanto lá quanto aqui, opta-se no momento pelo investimento em infraestrutura e política de direcionamento do desenvolvimento industrial também à luz de novas agendas ambientais: “reindustrialização” lá, “neoindustrialização” aqui. É uma mobilização considerável de recursos humanos e materiais no esforço permanente, e com resultados contingentes, de administrar politicamente a acumulação.
O segundo elemento é que nenhuma das considerações parece destoar quanto aos nós frouxos do aspecto administrativo do Estado no Brasil. Isso tem ligação com a qualificação da “tecnocracia”, do fomento de capacidades administrativo-políticas diante de tarefas especialmente complexas.
Isso se revela na necessidade de desenvolvimento de um plano mais claro diante de tarefas tais quais o PAC e a nova política industrial. Não se tem notícias ainda, salvo melhor juízo, do estabelecimento das prioridades, dos critérios de avaliação, dos mecanismos de controle sobre os potenciais desvios de recursos e outros malfeitos conhecidos. A criação das comissões e grupos de trabalho que ocorre agora no contexto dessas iniciativas seria enriquecida ao ter no horizonte tais tarefas gerenciais básicas. Como os resultados serão acompanhados e avaliados? Qual será a medida das despesas vis-à-vis as prioridades? Os investimentos levarão em conta setores estratégicos ou ocorrerão de modo linear como já experimentado? Em suma, os critérios e expedientes de avaliação da eficácia das ações e dos investimentos são tão importantes quanto divulgar efusivamente programas da magnitude do PAC e da natureza da “neoindustrialização”, de resto necessários. São necessários inclusive do ponto de vista das classes trabalhadoras caso produzam aquele cenário (ainda que temporário) em que expandem capital, produtividade e salários reais. Estariam hoje desenvolvidas capacidades estatais para tais atribuições (em contexto que cada vez mais predomina a pauta da transição energética)?
Seria prudente relembrar o destino de ações virtuosas que redundaram em vícios. O Ciência Sem Fronteiras, por exemplo, entrou para a história como uma boa ideia, porém, de execução discutível e resultados evanescentes. Parece que, diante das tarefas tais quais aquelas ligadas ao PAC e à nova política industrial, há capacidades estatais herdadas dos últimos anos que são discutíveis administrativa e politicamente. Nos EUA, está em curso considerável investimento nesse sentido, para, inclusive, qualificar seus “tecnocratas progressistas“. Mas a questão vai além dessa qualificação administrativa porque envolve também a sensível dimensão política que revela, por exemplo, o grau de autonomia do aparato estatal diante das forças econômicas dominantes.
Assim, a apresentação e escrutínio público dos planos e controles envolvidos é fundamental, mas não apenas como se pensa à primeira vista, isto é, para que possa ser lapidado. A transparência das intencionalidades, meios de execução e medidas de avaliação e de controle proporcionam as correções pelo caminho. Ampliam também as chances de eficácia dos programas de tal maneira que podem ganhar em legitimidade e aceitação durante e depois de sua realização. Isso também demanda um envolvimento mais estruturante por parte dos trabalhadores que ainda parece muito tímido, demonstrando que as capacidades especialmente políticas não são capturadas por poderosos interesses econômicos.
Com isso pode ser que houvesse certos obstáculos à tentação por aquele tipo de aventura regressiva recente e seu assédio liberal-conversador-militarizado. É preciso saber, pois, se as condições administrativas e políticas estão à altura de suas tarefas. O risco envolvido, de fato, é repetir erros que já são conhecidos por esta e por outras administrações passadas. Até agora, pelo menos, não está plenamente demonstrada a disposição em evitá-los.
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