Pragmatismo utópico num realismo distópico, por Thiago Martins Jorge
Entrevista de Haddad à Folha
Pragmatismo utópico num realismo distópico
Por Thiago Martins Jorge (@ThiagoMarJor) (@thiagomjorge.bsky.social)
Teceremos abaixo algumas considerações à entrevista concedida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, à jornalista Mônica Bergamo (Folha de São Paulo). A entrevista pode apresentar especial interesse aos leitores deste blog, uma vez que o ministro aborda alguns dos temas que têm sido debatidos neste espaço, mais especificamente: os ataques do capital financeiro ao Poder Executivo, problemas nos partidos políticos de esquerda e as reações ideológicas da extrema-direita.
Um elemento que chama a atenção de quem acompanha a entrevista na íntegra é que, ao longo dela, Haddad dá voz a duas posições bastante distintas. No início da entrevista, quando questionado sobre a reação da Faria Lima e às “bets”, o entrevistado se coloca claramente como o Ministro da Fazenda, racionalizando as ações e objetivos de um gestor prático. Já a partir dos 15 minutos da conversa, quando questionado quanto ao relativo fracasso eleitoral do seu partido nas eleições municipais, Haddad se coloca como um “cientista político”, e esboça análises mais elaboradas quanto ao contexto sociopolítico contemporâneo.
Por volta do 15º minuto da conversa, Haddad, o analista político, aponta que:
(...) a verdade é que depois da crise de 2008, que foi uma crise do neoliberalismo, a extrema-direita começou a avançar no mundo inteiro. O pensamento de extrema-direita começou a se impor. Uma, porque o neoliberalismo tava em crise; e a outra porque a esquerda ainda tava saudosa de estruturas do século XX que tinham feito água nos anos 80. O sistema soviético, o nacional-desenvolvimentismo e a própria social-democracia européia, eram três grandes estruturas com as quais partes da esquerda dialogavam. (...) Essas estruturas tinham desaparecido, entrado em colapso quase. O neoliberalismo se impôs, o consenso de Washington e em 2008 acabou isso. Sobrou para a extrema-direita que sempre cresce em momentos de crise sistêmica. Ela sempre cresce! Sobretudo quando a esquerda não se planeja para esse momento. Que foi o caso: a esquerda não estava preparada para 2008, com um programa renovado. Com um sonho renovado!
(...) E a bem da verdade, a esquerda ainda não está dialogando com o sonho de futuro, com um projeto de futuro. Quando você não tem mesmo que seja um sonho utópico, quando você não tem um horizonte em que se vai buscar as coisas, você tem o distópico. Não vai ficar no vácuo! (...) E a extrema-direita é distópica.
Essa fala, curiosamente, chama a atenção, pois, de certa forma, demonstra um senso de realidade até maior do que a fala inicial do Ministro da Fazenda, quando abordava dados e ações do Governo Federal. Não seria, portanto, nenhum absurdo especular que o próprio Haddad, Ministro da Fazenda, não escapa da crítica do Haddad, cientista político. E esse ponto fica inclusive mais claro na sequência, quando o entrevistado afirma que:
eu to fazendo uma autocrítica. Eu pertenço ao campo progressista e procuro, na medida do possível, escrever e elaborar sobre o assunto. (...) Mas não adianta uma pessoa ficar pensando descolada da outra. Tem que congregar as pessoas. Essas coisas não nascem espontaneamente. Precisa de elaboração teórica. Precisa fazer uma reflexão séria. E eu penso que a esquerda está se devendo isso. Mais formulação teórica, mais aprendizado, mais ousadia na reflexão sobre o que é possível fazer.
Nesse ponto, contudo, outros dois elementos já começam a se apresentar. O primeiro deles, é a própria terminologia empregada, por ele, para indicar a necessidade: “sonho”, “utopia”, etc. E também chama a atenção a ausência de qualquer menção ao projeto chinês, que, ainda que com suas limitações, se apresenta como uma novidade em relação às três estruturas do século XX mencionadas por Haddad.
O projeto chinês, inclusive, apresenta um pragmatismo e senso de realidade talvez até mais marcante do que as outras estruturas. E esse realismo escapa tanto ao Haddad, cientista político, quanto ao Haddad, Ministro da Fazenda. Indicativo disso é que, no início da conversa, ele argumentava, em termos exitosos, que:
nós vivemos um problema estrutural desde 2015. O que nós fizemos: nós estabelecemos um teto de gasto (...). O que significa que no ano de 2024, em que a receita cresceu 10 acima da inflação, a despesa não poderá crescer a cima de 2,5. A diferença de 7,5 é para recompor as contas públicas deterioradas. Essa é a estratégia: limitar a despesa à 70% da receita, com teto de 2,5. (...) e com isso reconstituir a base fiscal do Estado. Isso aqui até aqui deu certo! Durante os dois primeiros anos, nós diminuímos o déficit do ano passado a mais ou menos 1% do PIB, excetuado o pagamento dos calotes [aqui ele se refere ao não pagamento de precatórios pelo governo anterior].
(...) A Faria Lima está, com razão, preocupada com o seguinte: a dinâmica do gasto daqui para frente, ou seja, a soma das partes, das rubricas orçamentárias podem implicar que o arcabouço fiscal, aprovado por este governo, não se sustente.
Ou seja, o Ministro da Fazenda, distopicamente, se alinha à racionalidade da Faria Lima (capital financeiro), quando se trata de planejar a linha de ação fiscal do Governo. E aqui a diferença em relação ao projeto chinês fica ainda mais clara. Recentemente, as previsões pessimistas quanto ao desenvolvimento da economia chinesa levaram o governo chinês a adotar uma série de ações agressivas (fiscalmente) para reverter o quadro. Ações que, surpreendentemente, foram aplaudidas por analistas ocidentais que, via de regra, se colocam como críticos severos da linha intervencionista chinesa.
Contrastando também com a linha de atuação do Ministro Haddad, o recém-eleito governo francês, também muito pressionado a reduzir o déficit público, decide ampliar a taxação sobre grandes empresas.
Ou seja, enquanto o Haddad cientista-político externa preocupações com os rumos da sociedade contemporânea, o Haddad ministro adota não só uma linha bastante conservadora, mas ainda sustenta que essa linha vem dando bons resultados. Devemos reconhecer, é claro, que, enquanto Ministro, o discurso de Haddad deve seguir uma linha institucional que bloqueia qualquer tipo de balanço crítico. Além disso, mas nessa mesma linha, enquanto ministro, Haddad precisa dar respostas a problemas concretos que requerem urgência.
Parece-nos, entretanto, que o diagnóstico esboçado pelo cientista-político demandaria um outro tipo de pragmatismo por parte do ministro. É certo que o Estado brasileiro entrou numa espiral negativa de 2015 para cá. Contudo, é certo também que os problemas que geraram tal espiral negativa regridem ainda mais no tempo, indicando inclusive as limitações das ações dos antecessores de Haddad. Limitações que parecem se manter na linha de atuação do atual Ministro da Fazenda. Indicativo disso:
Haddad: A projeção do mercado para o crescimento do Brasil era 1% a.a. Era 0,8%, em 2023, e 1,5%, em 2024. Nós vamos crescer, tem gente já falando em crescimento em 3,5%.
Bergamo: Graças à expansão do gasto público.
Haddad: Não é verdade. O Impulso fiscal desse ano é menor do que do ano passado. Como é que vai explicar o crescimento de 3,5% pelo gasto. As pessoas estão desconsiderando que estamos fazendo a maior Reforma Tributária da história desse país.
Ou seja, o ministro busca se defender, sustentando que a expansão dos gastos não é a causa do crescimento. Nessa mesma direção, considerando toda a preocupação em controlar o déficit, fica claro que está fora de cogitação que o governo federal adote uma linha maior protagonismo. O problema central, no entanto, pelo menos nos horizontes de uma sociedade capitalista, é o atraso da economia brasileira em relação aos competidores externos. E, para reverter esse quadro, os investimentos estatais seriam fundamentais (desde que, obviamente, fossem dotados de racionalidade e efetividade).
Mencionamos, anteriormente, que o governo chinês adotou uma série de medidas, buscando sustentar o crescimento da economia chinesa (na qual, inclusive, 3,5% não chega a ser um indicador de tirar o fôlego). Como, portanto, imaginar que a economia brasileira poderá reverter o atraso investindo menos que os competidores que já estão muito a sua frente?
A dura (distópica) resposta, no entanto, parece até simples: a racionalidade da Faria Lima é, na realidade, a racionalidade vencedora. E, nela, o atraso econômico brasileiro (e seus efeitos sociais) não são um problema central. Problema central é a remuneração do capital financeiro, diante do qual, os gastos públicos, quanto mais ambiciosos forem, mais ameaçadores se tornam.
É importante enfatizar também que, a bem da verdade, ficar para trás em setores chave, já é muito mais uma realidade do que ameaça futura. E essa afirmação tem validade inclusive para competidores que se colocam bem à frente da economia brasileira. Um bom exemplo disso são as medidas desesperadas adotadas dentro da União Européia para conter o avanço dos carros elétricos chineses. A lição, portanto, não poderia ser mais clara: se mesmo o tradicional setor automobilístico alemão está sofrendo com a competição chinesa e se há alguma pretensão de que a economia brasileira avance, as travas fiscais são uma sentença de morte.
O que de fato deveria estar na mesa é a adoção de critérios rigorosos para que os gastos governamentais sejam dotados da maior efetividade possível. Em outras palavras, enquanto ancorados na competição capitalista, o mantra a ser repetido não deveria ser cortar gastos e eliminar déficit, mas sim, aumentar investimentos com a máxima efetividade.