Richard D. Wolff – Inteligência Artificial: lucro versus liberdade
O uso da IA pode garantir muito mais comodidade para a classe trabalhadora, mas o capitalismo a subordina à extração do lucro.
Segue abaixo a tradução do original Artificial Intelligence: Profit Versus Freedom, de Richard D. Wolff, conforme versão da Brave New Europe. O texto é interessante pelo debate que provoca. Se, por um lado, coloca o problema da tecnologia enlaçada pela lógica do capitalismo, seu autor, por outro lado, adere à posição de que a despersonalização do capital de sua figura clássica (empregador) faria frente aos imperativos da lógica do capital e abriria as portas para a fruição coletiva dos trabalhadores. Não que a forma cooperativa generalizada não pudesse talvez colocar outro patamar civilizacional, mas Wolff limita-se à forma ao invés de jogar luz no conteúdo essencial da produção de mercadorias. Traremos comentários adicionais ao texto na próxima semana.
Richard D. Wolff – Inteligência Artificial: lucro versus liberdade
O uso da IA pode garantir muito mais comodidade para a classe trabalhadora, mas o capitalismo a subordina à extração do lucro.
Richard D. Wolff é professor emérito de economia na Universidade de Massachusetts, Amherst, e professor convidado no Programa de Pós-Graduação em Assuntos Internacionais da New School University, em Nova Iorque.
Este artigo foi produzido por Economy for All, um projeto do Independent Media Institute.
A Inteligência Artificial (IA) apresenta uma oportunidade de lucro para capitalistas, mas coloca uma escolha crucial para a classe trabalhadora. Uma vez que a classe trabalhadora é a maioria, essa escolha crucial confronta a sociedade como um todo. É a mesma oportunidade de lucro/escolha social que foi representada pela introdução da robótica, dos computadores e, de fato, pela maioria dos avanços tecnológicos ao longo da história do capitalismo. No capitalismo, os empregadores decidem quando, onde e como instalar novas tecnologias; os trabalhadores, não. As decisões dos empregadores são motivadas principalmente pela forma como as novas tecnologias afetam os seus lucros.
Se as novas tecnologias permitirem aos empregadores substituir, de forma a aferir lucro, trabalhadores assalariados por máquinas, eles implementarão a mudança. Os empregadores têm pouca ou nenhuma responsabilidade ante os trabalhadores deslocados, as suas famílias, bairros, comunidades ou governos pelas muitas consequências da perda de empregos. Se o custo do desemprego para a sociedade for 100 e o ganho para os lucros dos empregadores for 50, a nova tecnologia é implementada. Como o ganho dos empregadores rege a decisão, a nova tecnologia é introduzida, por menor que seja esse ganho em relação à perda da sociedade. É assim que o capitalismo sempre funcionou.
Um exemplo aritmético simples pode ilustrar a essência da questão. Suponhamos que a IA duplica a produtividade de alguns trabalhadores. Durante o mesmo tempo de trabalho, eles produzem o dobro do que produziam antes da utilização da IA. Os empregadores que utilizam a IA eliminarão então metade dos seus trabalhadores. Esses empregadores receberão então dos restantes 50% dos seus empregados a mesma produção que tinham antes da introdução da IA. Para simplificar o nosso exemplo, vamos supor que esses empregadores vendam essa mesma produção pelo mesmo preço de antes. As suas receitas resultantes serão igualmente as mesmas. A utilização da IA fará com que os empregadores poupem 50% do total da sua massa salarial anterior (menos o custo de implementação da IA) e essas poupanças serão mantidas pelos empregadores como um lucro adicional. Esse lucro adicional foi um incentivo efetivo para o empregador implementar a IA.
Se imaginarmos, por um momento, que os trabalhadores tivessem o poder que o capitalismo confere exclusivamente aos empregadores, aqueles optariam por utilizar a IA de uma forma completamente diferente. Utilizariam a IA, não despediriam ninguém, mas reduziriam os dias de trabalho de todos os empregados em 50%, mantendo os seus salários inalterados. Mais uma vez, mantendo a simplicidade do nosso exemplo, isso resultaria na mesma produção que antes da utilização da IA, e o mesmo preço para os bens ou serviços e o mesmo influxo de receitas. Após a utilização da IA, a margem de lucro manter-se-ia igual à anterior (menos o custo de implementação da tecnologia). Os 50 por cento dos dias de trabalho anteriores dos empregados que agora estão disponíveis para o seu lazer seriam o benefício que eles acumulariam. Esse lazer - a liberação do trabalho - é o seu incentivo para utilizar a IA de forma diferente da utilizada pelos empregadores.
Uma das formas de utilizar a IA permite aumentar os lucros de alguns, enquanto a outra permite aumentar o lazer/liberdade de muitos. O capitalismo recompensa e incentiva a forma dos empregadores. A democracia aponta para o outro lado. A tecnologia em si é ambivalente. Pode ser utilizada de modos diversos.
Por conseguinte, é simplesmente falso escrever ou dizer - como muitos fazem atualmente - que a IA ameaça milhões de empregos ou de trabalhadores. A tecnologia não faz isso. Pelo contrário, o sistema capitalista organiza as empresas em empregadores versus empregados e, assim, utiliza o progresso tecnológico para aumentar o lucro e não o tempo livre dos empregados.
Ao longo da história, os entusiastas celebraram a maioria dos grandes avanços tecnológicos devido às suas qualidades de "poupar trabalho". A introdução de novas tecnologias permitiria menos trabalho, menos trabalho penoso e menos trabalho degradante. A implicação era que "nós" - todas as pessoas – nos beneficiaríamos. É claro que os lucros acrescidos dos capitalistas com os avanços técnicos lhes traziam, sem dúvida, mais lazer. No entanto, o lazer adicional que as novas tecnologias tornaram possível para a maioria dos trabalhadores foi-lhes negado na maior parte dos casos. O capitalismo - o sistema orientado para o lucro - causou essa negação.
Atualmente, deparamo-nos com a mesma velha história capitalista. A utilização da IA pode garantir muito mais lazer à classe trabalhadora, mas o capitalismo subordina a IA ao lucro. Os políticos derramam lágrimas de crocodilo perante a visão assustadora dos empregos perdidos para a IA. Os especialistas trocam estimativas de quantos milhões de empregos serão perdidos se a IA for adotada. Os liberais crédulos inventam novos programas governamentais destinados a diminuir ou atenuar o impacto da IA no emprego. Mais uma vez, o acordo tácito é não questionar se e como o problema deriva do capitalismo, nem procurar a possibilidade de mudança de sistema como a solução para esse problema.
Numa economia baseada em cooperativas de trabalhadores, os trabalhadores seriam, coletivamente, os seus próprios empregadores. A estrutura central das empresas do capitalismo - o sistema empregador versus empregado - deixaria de prevalecer. A implementação da tecnologia seria, então, uma decisão coletiva a que se chegaria democraticamente. Com a ausência da divisão capitalista entre empregador e empregado, a decisão sobre quando, onde e como utilizar a IA, por exemplo, passaria a ser tarefa e responsabilidade dos empregados como um todo coletivo. Poderiam considerar a rentabilidade da empresa como um dos seus objetivos para a utilização da IA, mas certamente que também considerariam o ganho de lazer que isso torna possível. As cooperativas de trabalhadores tomam decisões diferentes das empresas capitalistas. Diferentes sistemas econômicos afetam e moldam de forma diferente as sociedades em que operam.
Ao longo da história do capitalismo, os empregadores e os seus ideólogos aprenderam a melhor forma de defender as mudanças tecnológicas que poderiam aumentar os lucros. Celebraram essas mudanças como avanços do engenho humano que mereciam o apoio de todos. Os indivíduos que sofriam devido a esses avanços tecnológicos eram descartados como "o preço a pagar pelo progresso social". Se os que sofriam reagissem, eram denunciados pelo que era visto como um comportamento antissocial e eram frequentemente criminalizados.
Tal como aconteceu com os avanços tecnológicos anteriores, a IA coloca na agenda da sociedade tanto novas questões como velhas questões polêmicas. A importância da IA NÃO se limita aos ganhos de produtividade que consegue e às perdas de emprego que ameaça. A IA também desafia - mais uma vez - a decisão social de preservar a divisão empregador-empregado como a organização básica das empresas. No passado do capitalismo, apenas os empregadores tomavam as decisões cujos resultados os trabalhadores tinham de viver e aceitar. Talvez com a IA, os trabalhadores exijam tomar essas decisões através de uma mudança de sistema que ultrapasse o capitalismo e se transforme numa alternativa baseada numa cooperativa de trabalhadores.
Richard D. Wolff – Artificial Intelligence: Profit Versus Freedom, September 23, 2023.