Tradução: A visão de Marx sobre a desigualdade, por Branko Milanovic
A esquerda desistiu de usurpar o capitalismo.
O curto texto a seguir é uma tradução livre do original Marx’s vision of inequality, by Branko Milanovic, UnHerd, October 16, 2023. Alguns aspectos considerados pelo autor possuem afinidades com as questões levantadas neste Blog a respeito da “utilidade” do marxismo comparativamente às tendências dominantes na administração da economia capitalista. O texto de B. Milanovic é interessante por colocar em primeiro plano a exigência essencial de superação do modo de produção capitalista como condição de uma efetiva história humana, para além das relações de dominação entre classes. Diante disso, é instigante o questionamento ao embaralhamento contemporâneo dessa posição à aceitação implícita das reformas do capitalismo. Embaralhamento dessa posição, porém, subordinada, diga-se.
A visão de Marx sobre a desigualdade, por Branko Milanovic
Supõem-se frequentemente que Marx foi um pensador igualitário. Isso é feito, acredito, não através da leitura de Marx (poucas pessoas o fazem), mas aplicando uma simples extrapolação. De acordo com essa visão comum, e um tanto ingênua, do mundo, a direita favorece a desigualdade, um Estado pequeno e quase nenhuma redistribuição, e a esquerda, o inverso. Quanto mais você se move em direção à extrema esquerda, mais a última posição deve ser verdadeira. E como os marxistas são considerados de extrema esquerda, eles devem ser a favor da igualdade ainda mais do que os outros esquerdistas.
Essa visão, no entanto, ignora qual era o objetivo principal de Marx: a abolição das classes, o fim da propriedade privada do capital e, portanto, a superação do capitalismo. Marx e Engels foram, de fato, ativistas, fundadores da Primeira Internacional, organizadores incansáveis de várias assembleias operárias, autores do Manifesto Comunista e de palestras muito acessíveis proferidas em associações de trabalhadores (especialmente o muito simples, mas brilhante Trabalho Assalariado e Capital de Marx). Em tais atividades, eles necessariamente defendiam causas típicas pró-trabalhadores ou pró-sindicatos: redução do número de horas de trabalho, proibição do trabalho infantil, salários mais altos, educação gratuita.
Então, como ele poderia não ter sido um pensador pró-igualdade? Para entender isso, é preciso voltar ao objetivo principal de Marx e Engels: o fim da sociedade de classes. Para que esse objetivo final fosse alcançado, era necessário o ativismo operário do qual Marx participava e que ele apoiava. Também foi útil, pois trouxe alguns ganhos reais para os trabalhadores. Mas esse ativismo, na visão de Marx, nunca deve perder de vista o objetivo final. A redução da desigualdade que poderia ser obtida através das lutas sindicalistas não pode, por si só, ser o objetivo final. É apenas um objetivo intermediário, no caminho para a sociedade sem classes.
Marx e Engels são muito claros neste ponto em sua crítica ao Programa de Gotha, o novo programa do Partido Social-Democrata Alemão elaborado em 1875. Essa foi a ocasião mais importante em que expressaram com ênfase o contraste entre os dois objetivos: a redução da desigualdade de renda dentro de uma sociedade capitalista e a abolição de classes. Como escreveu Engels: “A eliminação de toda a desigualdade social e política [como afirmado no Programa de Gotha] em vez de ‘abolir as distinções de classe’ é igualmente uma expressão muito dúbia, pois entre um país, uma província e mesmo um lugar e outro, as condições de vida sempre evidenciarão uma certa desigualdade que pode ser reduzida ao mínimo, mas nunca totalmente eliminada”.
Que sua preocupação não era infundada pode ser visto pelo fato de que o programa, apesar das objeções de Marx e Engels, foi adotado com todas as suas características reformistas e melioristas. O partido então foi ainda mais longe na direção reformista quando Eduard Bernstein, que nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial se tornou seu principal teórico, argumentou que “o movimento é tudo, o objetivo, nada”, o que significa que a luta contínua por uma melhor existência cotidiana dos trabalhadores é o que importa, não o objetivo abstrato, ou talvez, utópico de transcender o capitalismo.
Para Marx, como argumentam Shlomo Avineri e Leszek Kolakowski, essa transformação de um partido social-democrata no braço político de um movimento sindical não foi suficiente. Além disso, Avineri pensa que, para Marx, o valor fundamental da atividade sindical não estava em sua luta, ou, às vezes, nos sucessos na melhoria das condições dos trabalhadores, mas na fraternidade entre os membros que ela criou na luta por uma causa comum – no “esforço construtivo real para criar a textura social das futuras relações humanas”. A prontidão para o sacrifício, a dedicação ao objetivo comum e o bom humor que Marx viu entre o proletariado parisiense em 1848 e 1871, e que ele narrou com tanta paixão, foram para ele vislumbres da futura sociedade sem classes, onde a solidariedade reinará diante da “água gelada” do interesse próprio.
Para Marx, a importância subsidiária ou secundária da igualdade como meta vem também da impossibilidade de alcançar a verdadeira igualdade sob o capitalismo. A verdadeira igualdade só será possível quando uma minoria deixar de monopolizar o acesso ao capital para comprar força de trabalho e se apropriar da mais-valia. “Clamar por remuneração igual ou mesmo equitativa”, escreveu Marx, “com base no sistema salarial é o mesmo que clamar por liberdade com base no sistema escravista”.
Quando a preocupação com a igualdade tornar-se-á mais importante? Somente quando as instituições de fundo adequadas (ausência de propriedade privada) tiverem sido estabelecidas. Aqui, como se sabe, Marx distingue dois estágios: o socialismo, onde a escassez ainda está presente e onde regras iguais serão aplicadas a pessoas desiguais (aqueles que trabalham duro, são mais inteligentes ou mais sortudos ganharão mais), e o estágio mais alto de desenvolvimento, sob o comunismo, quando, como diz a famosa fórmula, “todos contribuirão de acordo com suas capacidades e receberão de acordo com suas necessidades”.
É somente sob o socialismo que devemos começar a nos preocupar principalmente com as desigualdades materiais – isto é, no momento em que a exploração de classe fosse eliminada, mas antes que a sociedade da abundância tivesse chegado. Enquanto as instituições de fundo forem “falhas”, e enquanto o capital privado existir, acreditar que a redução da desigualdade é o objetivo primário da esquerda é, segundo Marx, errado porque aceita implicitamente a manutenção de instituições injustas que geram desigualdade.
Dado que os escritos de Marx são explícitos sobre isso, por que tendemos a ignorar suas visões sobre igualdade? A resposta, suspeito, é que, após os fracassos cataclísmicos do socialismo e a ascensão ideológica da ideologia neoliberal, aceitamos tacitamente a permanência do capitalismo. Se alguém tem essa visão, então de fato faz sentido remodelar Marx como um pensador pró-igualdade que se preocupava com a atividade sindical, igualdade de oportunidades, salários mais altos dos trabalhadores e afins. Em outras palavras, se desistimos da ideia de acabar com o capitalismo, podemos tentar redirecionar Marx como apóstolo da igualdade sob o capitalismo.
Mas pode não ser fácil. Afinal, se a esquerda joga fora a ideia de transcender o capitalismo, pode-se dizer que é de esquerda?
Marx’s vision of inequality, by Branko Milanovic, UnHerd, October 16, 2023.