Tradução: Ao aplicar o cartão vermelho a Elon Musk, Brasil marcou um gol para todas as democracias?
Justiça brasileira determina o bloqueio da plataforma até que ela cumpra a lei. É a primeira vez entre países não autocráticos.
O texto é uma tradução livre do original By showing Musk’s X the red card, has Brazil scored a goal for all democracies?, escrito por John Naughton. Gera sempre algum interesse a forma como analistas estrangeiros repercutem fatos que movimentam o noticiário brasileiro, e não seria diferente diante do proclamado “embate Musk-Moraes”. No entanto, para além dessa curiosidade, o texto publicado no The Guardian reforça que a atuação do X e de outras redes sociais tem se mostrado, na realidade, uma ameaça civilizatória global, e não uma mera querela entre duas personalidades que se tornam corriqueiras na mídia brasileira.
Ministro da Suprema Corte brasileira, Alexandre de Moraes, tomou a decisão sem precedentes de fechar a plataforma de mídia social X de Elon Musk. Fotografia: Andre M Chang/ZUMA Press Wire/Rex/Shutterstock.
10 minutos depois da meia-noite de 31 de agosto, o X de Elon Musk (antigo Twitter) ficou escuro no Brasil, um país com mais de 200 milhões de almas, muitas delas usuárias entusiasmadas de serviços online. No dia anterior, um ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, havia feito algo até então impensável: ordenou que os ISPs do país bloqueassem o acesso à plataforma, ameaçou uma multa diária de R$ 50.000 (pouco menos de £ 6.800) para usuários que burlassem a proibição usando redes privadas virtuais (VPNs) e congelou as finanças do provedor de serviços de internet Starlink de Elon Musk no país. A ordem permaneceria em vigor até que a plataforma cumprisse as decisões do Supremo Tribunal Federal, pagasse multas no total de R$ 18,3 milhões (quase £ 2,5 milhões) e nomeasse um representante no Brasil, uma exigência legal para empresas estrangeiras que operam lá. Moraes também instruiu a Apple e o Google a remover o aplicativo X e o software VPN de suas lojas, mas depois reverteu essa decisão, citando preocupações sobre possíveis interrupções "desnecessárias".
Provocando choque, horror, incredulidade, indignação e todas as reações intermediárias. Musk – que vem brigando com Moraes há um bom tempo – twittou: "A liberdade de expressão é a base da democracia e um pseudo-juiz não eleito no Brasil está destruindo-a para fins políticos". A animosidade entre os dois remonta a 8 de janeiro de 2023, após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais brasileiras de 2022, quando uma multidão de seus apoiadores atacou prédios do governo federal na capital, Brasília. A multidão invadiu e causou danos deliberados ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e ao Palácio do Planalto, em uma tentativa abortada de derrubar o presidente democraticamente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.
O juiz Moraes está na linha de fogo porque, antes da eleição presidencial de 2022, a Suprema Corte do país lhe deu poderes expansivos para reprimir as ameaças online à democracia e ele tem sido um defensor entusiasmado dessa capacidade desde então. Uma reportagem do New York Times, por exemplo, disse que ele "prendeu cinco pessoas sem julgamento por postagens nas redes sociais que, segundo ele, atacavam as instituições brasileiras. Ele também ordenou que as redes sociais removessem milhares de postagens e vídeos com pouco espaço para apelação. E é esta última prática que o colocou em colisão com Musk, cuja plataforma foi um dos canais usados pelos insurgentes de 8 de janeiro.
A cobertura da mídia sobre esse confronto previsivelmente o personalizou como executor implacável contra titã da tecnologia. Quem vai piscar primeiro? Por que diabos Musk escolheu essa luta? Sua obsessão estúpida com a liberdade de expressão finalmente o levou ao limite? Afinal, ele poderia ter cumprido as ordens de remoção de Moraes, mantido o escritório em Brasília e combatido a questão nos tribunais brasileiros. Em vez disso, ele tirou a bola, deixando mais de 20 milhões de usuários brasileiros do X desamparados. Por outro lado, embora Moraes tenha se mostrado um freio bastante eficaz sobre Bolsonaro – um Donald Trump de baixo preço que atacou a mídia, os tribunais e o sistema eleitoral do país – alguns críticos estão começando a se perguntar se, em sua missão de proteger a democracia, o juiz também pode acabar corroendo-a.
Quem sabe? Mas, pelo menos por enquanto, uma coisa é clara: esta é a primeira vez que um estado democrático fecha uma das principais plataformas de tecnologia. As autocracias fazem isso à vontade (por exemplo, China, Rússia, Irã, estados do Golfo), mas até agora as democracias se esquivaram de uma medida tão extrema. Ouvir algumas das conversas na web sobre a ordem de Moraes fornece uma pista da timidez, pois o que você percebe é o espanto com o descaramento de um mero brasileiro que se atreve a derrubar uma grande plataforma americana porque ela não obedece à lei de sua terra em particular. Quem ele pensa que é? Ele não entende que o "destino manifesto" do Vale do Silício é o principal motor do progresso humano, deixando raças inferiores balançando impotentes em seu rastro?
Os EUA estão escravizados pelos interesses corporativos e determinados a impor absurdos libertários ao resto do mundo
Esse arrepio servil sugere que a tecnologia do Vale do Silício é apenas a mais recente manifestação do que o cientista político Joseph Nye chamou de "soft power". Nye definiu-o como o "poder de uma nação, estado, aliança, etc., derivado da influência econômica e cultural, em vez de coerção ou força militar", mas pode ser descrito de forma mais cínica como a capacidade de infligir as normas culturais de uma superpotência hegemônica ao resto do mundo. Nesse sentido, o Facebook e outros estão apenas fazendo o mesmo trabalho que Hollywood, McDonald's, Nike e sua turma fizeram nas décadas de 1960 e 1970. E se esse for realmente o caso, então estamos em apuros, porque os EUA se transformaram em uma superpotência cronicamente polarizada que é escrava de interesses corporativos, governada por uma constituição disfuncional e antiquada e determinada a impor absurdos libertários ao resto do mundo.
Seja qual for a explicação para nossa passividade democrática, o histórico das últimas duas décadas não foi encorajador. Os governos ocidentais pareciam estar dormindo ao volante enquanto seus cidadãos adotavam avidamente novas ferramentas e mídias que os capacitavam e encantavam - mas que, ao mesmo tempo, os tornavam vulneráveis à vigilância detalhada (e manipulação) por um pequeno número de corporações estrangeiras monopolistas. Em 2015, porém, os alarmes deveriam estar soando no Ocidente, pois ficou claro que a tecnologia estava permitindo que adversários estrangeiros (bem como subversivos e criminosos internos) disseminassem desinformação em escala industrial que poderia minar as instituições democráticas, particularmente as eleições. E se alguém duvidava que a tecnologia representava uma ameaça existencial à democracia liberal, então a insurreição de 6 de janeiro de 2021 em Washington DC deveria ter resolvido a questão.
Subjacente a tudo isso, porém, havia uma questão ainda maior: as democracias liberais têm a capacidade de controlar as corporações que possuem e operam essa tecnologia? Sabemos que isso pode ser feito porque os estados autoritários o fazem. Mas estamos muito paralisados por nosso apego ao estado de direito, pelos bolsos fundos das corporações e pela tolerância de nossos legisladores ao lobby para realizá-lo? Até recentemente, meu medo era que a resposta fosse “não”, uma vez que historicamente as democracias têm sido feras lentas.
De repente, porém, a atmosfera parece estar mudando. A UE agora tem três leis significativas em seu livro de estatutos: a Lei de Mercados Digitais e a Lei de Serviços Digitais, e agora sua Lei de IA. Do outro lado do Atlântico, vimos a condenação do Google como monopolista e agora seu processo por controle abusivo do mercado de publicidade digital. Aqui no Reino Unido, a Autoridade de Concorrência e Mercados tem lançado um olhar sinistro sobre o tipo de fusões corporativas de tecnologia que costumavam ser aprovadas. Do outro lado do Canal, os franceses estão mantendo o executivo-chefe do Telegram enquanto investigam o esgoto tóxico que ele administra. E agora X foi encerrado por um juiz no Brasil. Então algo está acontecendo. E já era hora.