Tradução: Quando Foucault e os liberais austríacos concordaram sobre a impossibilidade da racionalidade política, por Parv Tyagi
O artigo de Parv Tyagi, When Foucault and the Austrian Liberals Agreed on the Impossibility of Political Rationality no original, é mais claramente uma afirmação dos fundamentos da Escola Austríaca do que uma crítica a certas afinidades entre Hayek e Foucault. É o ensejo para homogeneizar a realidade de tal maneira para sustentar que toda atuação do Estado é baseada em conhecimento que não existe, tornando o planejamento impossível, e que toda atuação é voltada à restrição das liberdades individuais. Se o leitor, com isso, recordar-se da rebeldia nietzschiana não será mero acaso. Do lado dos austríacos, é notória a posição de fundamento segundo a qual o Estado é, em si, apenas vício, que a virtude está na ordem espontânea fora da esfera política. É uma unilateralidade da qual Foucault escapa. Mas a aproximação entre o austríaco e o pós-estruturalista não deixa de ser do interesse daqueles que se debruçam sobre o pensamento econômico, particularmente sobre um pensamento administrativo-político e sobre a agência estatal na administração da acumulação. A questão da “razão de Estado” ou “racionalidade política”, ainda que apresentada de modo discutível no artigo aqui traduzido, ajuda a evocar a crítica de Marx, de 1844, à um tipo de “razão política”. Nessa crítica está colocado que, do ponto de vista da política, do Estado, não se pode reconhecer que as causas das contradições estão nos fundamentos pelos quais a sociedade está organizada. Esse modo de organização é a essência do Estado e nela atua administrativa e politicamente com efeitos variados. Esse problema do reconhecimento das causas não decorre apenas do conhecimento precário que, de resto, é mesmo sempre aproximado – e nisso se vê certa trivialidade de Hayek (e de Foucault, se Tyagi tiver correto) ou, ainda, uma manipulação das características da ciência contra ela mesma para destruir a razão. Em 1844, Marx considerou que a resolução das contradições fundamentais da sociedade levaria à dissolução do próprio Estado que é estruturalmente limitado às medidas administrativas diante dos problemas que decorrem de tais contradições. Mas esse alcance da raiz da questão não é dado a Hayek ou a Foucault. O assunto merece debate.
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Introdução
A esquerda acadêmica reverencia o filósofo Michel Foucault há muitos anos e os seus trabalhos sobre o poder repressivo das instituições modernas. No entanto, em algum momento no final da década de 1970, Foucault começou a questionar a “violência inerente ao Estado socialista sob o seu paternalismo de bem-estar social”. A sua aparente desilusão com a esquerda ortodoxa coincidiu com o seu apoio aos dissidentes do leste europeu. Essa delimitada mudança de caráter anti-estatal nas palestras de Foucault demonstrou uma afinidade com algumas das ideias dos escritores liberais austríacos, como Ludwig von Mises e F.A. Hayek.
Este artigo tenta facilitar um diálogo entre Foucault e os liberais austríacos. A produção teórica da governamentalidade de Foucault, creio eu, tem muito em comum com a crítica austríaca ao planejamento central. O planejamento é possível graças ao acúmulo de estatísticas sobre os indivíduos. Foucault e intelectuais austríacos examinaram criticamente a centralidade das estatísticas no projeto de controle por parte do Estado. Ambas as posições criticam a racionalidade política incorporada nas estatísticas.
O objetivo aqui não é localizar Foucault no pensamento liberal austríaco, ou vice-versa. A historiografia “isenta de valores” de Foucault torna tal empreendimento revisionista muito difícil, se não impossível.
Governamentalidade
Foucault definiu o termo “governo” como “a condução da conduta”, com o sentido de uma forma de atividade que busca afetar a conduta de outros. O governo como atividade envolveria, então, alguma forma de controle. Esta definição, no entanto, é suficientemente ampla para abranger todas as relações sociais e pessoais. Nas suas palestras sobre a racionalidade do governo, porém, Foucault esteve principalmente preocupado com o governo no domínio político.
A explicação de Foucault sobre a racionalidade governamental, ou a razão de Estado, começou com o tratado de Nicolau Maquiavel, O Príncipe. De acordo com o princípio maquiavélico da “raison d’Etat”, o Estado constituiria um fim em si mesmo. Esta compreensão do Estado e do seu poder embasou uma reconsideração nos séculos XVIII e XIX. Os horizontes do poder estatal se expandiram. A arte de governar agora incluía o exercício de amplas técnicas de controle. E isso, no esquema foucaultiano, marcou o advento da governamentalidade.
A governamentalidade, em termos simples, é a arte de governar. No contexto do Estado moderno, esta arte preocupa-se principalmente com a seguinte questão: como introduzir a economia, ou seja, a forma correta de gerir os indivíduos, os bens e a riqueza, sob a administração do Estado. Em outras palavras, governamentalidade é a arte empregada para organizar e controlar uma população. Isto é possível graças ao uso de táticas sofisticadas, chamadas “dispositivos de segurança”. Um desses dispositivos de segurança são as estatísticas. Assim, o papel secundário do governo durante o século XIX poderia ser explicado, entre outras coisas, pela imaturidade dos métodos estatísticos naquela época. Com o advento de estatísticas complexas no início do século XX, os contornos da governamentalidade ampliaram.
O Estado coleta, interpreta e analisa dados numéricos sobre uma população por meio de estatísticas. É importante ressaltar que as conclusões tiradas desses dados são meras representações e não realidades exatas. É impossível captar as complexidades da dinâmica da população. Existem peculiaridades e particularidades de uma população que não podem ser quantificadas. Portanto, o Estado depende de classificações e formula apenas verdades gerais. A armadilha é que as estatísticas nacionais podem muitas vezes representar de forma imprecisa ou, pior, distorcer o que se passa em uma população. Segue-se que o Estado tem o poder de deturpar as características de uma população.
As estatísticas servem a mais um propósito importante. As estatísticas promovem no intervencionista a percepção de conhecimento e experiência. É apenas através das estatísticas que o intervencionista descobre quem precisa do quê e quanto dinheiro deve ser canalizado para tais e quais usos. É precisamente esta impressão de especialização e precisão que a tradição austríaca há muito desafia.
A Escola Austríaca
A teoria econômica austríaca é frequentemente descrita como a economia do tempo e da ignorância. No núcleo dessa abordagem está o problema do conhecimento descentralizado. Todos os indivíduos, sob tal visão, agem diante de conhecimentos dispersos. Nenhum agente tem acesso a todas as informações relevantes sobre as preferências e planos de outros para o futuro. Esse conhecimento pode não apenas ser dispendioso de adquirir, mas pode simplesmente não existir na forma necessária para a tomada de decisões.
Se o problema da sociedade é principalmente de rápida adaptação às mudanças nas circunstâncias específicas de lugar e tempo, devemos resolvê-lo por meio de alguma forma de descentralização. O problema não pode ser resolvido reunindo primeiro este conhecimento e comunicando-o ao planejador central, que então emitirá as suas ordens.
A partir desta tradição, Hayek apreende uma explicação de uma ordem social, e não do caos, na qual as ações cegas dos indivíduos convergem espontaneamente, sem a necessidade de planejamento consciente [exógeno]. Na verdade, a superioridade do mercado reside na sua capacidade de distribuir conhecimento sem supervisão central. A abordagem de Hayek foi marcadamente diferente da dos seus contemporâneos positivistas, keynesianos e bem-estaristas, que empregavam uma confusão de equações matemáticas para alcançar as “verdades” econômicas.
Para tomar um exemplo, os economistas do mainstream usam o cálculo multivariado para determinar o ponto de equilíbrio do consumidor. Neste ponto, a utilidade marginal do bem x dividida pelo preço do bem x é igual à utilidade marginal do bem y sobre o preço do bem y. Para os Austríacos, esta solução é um exercício de fraude. Simplesmente não há como medir a satisfação de alguém.
Os símbolos da matemática não são significativos em si. Seu significado é operacional, ou seja, são significativos na medida em que explicam determinados fatos. Em outras palavras, os símbolos matemáticos obtêm seu significado a partir de testes operacionais. Portanto, o modelo matemático, embora perfeitamente adequado às ciências naturais, priva a economia do seu significado e, por extensão, o de todas as ciências sociais.
Não há dúvida de que se pode fazer deduções lógicas a partir da ação humana. E a matemática é de fato um ramo da lógica dedutiva. Mas é impossível, postulam os austríacos, chegar a essas deduções com a precisão que o raciocínio matemático exige.
Estatística, intervenção e pretensão de conhecimento
Como o conceito de governamentalidade de Foucault se relaciona à crítica austríaca à precisão estatística e ao planejamento central? No esquema foucaultiano, o governo é um modo de poder estratégico e racionalizado, cujas ações são justificadas por uma forma particular e distinta de racionalidade. A governamentalidade funciona a partir do pressuposto de que o governo possui, ou pode obter, o conhecimento relevante para executar os objetivos fixados. Para os austríacos, esta suposição é ilusória. Qualquer ação tomada com base em tal pretensão de conhecimento é, portanto, uma invasão maliciosa da liberdade individual. Nessa medida, a explicação austríaca é uma abordagem antirracionalista que ataca esta mesma lógica da soberania. É uma crítica à razão política, alertando o soberano de que não pode intervir porque não sabe. Por esta razão, portanto, a unidade de conhecimento e governo que caracteriza a raison d’Etat governamental cai por terra.
Esse aspecto apresenta notável semelhança com a antipatia do próprio Foucault pela racionalidade política. Como o próprio Foucault declarou, o seu estudo da governamentalidade foi motivado por uma preocupação com a libertação diante da racionalidade política. A “ordem espontânea” de Hayek representa, para Foucault, uma crítica oblíqua senão radical à técnica do Estado. O conhecimento que se pretende compilar pelo soberano é, mesmo em princípio, impossível de obter.
A centralidade das estatísticas na máquina estatal moderna é um caso particular a ser considerado. Segundo Foucault, as estatísticas nacionais andam de mãos dadas com a governamentalidade. Foucault explica que o Estado moderno está fortemente focado no agregado. As estatísticas nacionais recolhem informações a nível individual e agrupam-nas em médias a nível agregado. É essa obsessão em encontrar a “verdade” sobre a população que interessa a Foucault. Ao contrário dos austríacos, ele não está interessado na eficácia metodológica das estatísticas. No entanto, partilha com eles a preocupação de que tal “verdade” tenha o poder de impor limites às liberdades individuais. A imaginação austríaca da ordem espontânea fornece alguma solução para essa questão. Prescinde dessa “verdade” estritamente positivista e do poder estatal arbitrário empregado para encontrá-la.
A ideia de desenvolver estatísticas, não como meros registros, mas como base para o planejamento, é, assim, uma das principais causas da sua proliferação. No entanto, a relação também funciona ao reverso. O crescimento das estatísticas acaba por multiplicar os meios de intervenção governamental, isto é, o seu próprio desenvolvimento autônomo abre novos campos para o intervencionista explorar. Cada nova técnica estatística logo adquire sua própria subdivisão e aplicação no governo.
Existem razões pelas quais os estatisticamente orientados tendem a ser intervencionistas. As estatísticas semeiam no intervencionista uma percepção de conhecimento e experiência. A noção de “expertise” carrega aqui uma conotação imediatamente “pragmática”. O expert detecta, sob o cuidado da sua ávida investigação, as muitas “áreas problemáticas” da sociedade – a lista é, obviamente, interminável. Assim, o expert tende a sugerir intervenções pragmáticas para resolver esses problemas. Tal abordagem ad hoc, caso a caso, degenera num confuso intervencionismo estatal.
Conclusão
Governo é o termo preferido de Foucault para designar poder, e governamentalidade é a própria racionalidade específica do governo. À medida que a população se tornou objeto do governo, incentivou o desenvolvimento de formas especializadas de conhecimento. A análise estatística e a macroeconomia surgiram ambas no contexto histórico do New Deal nos Estados Unidos, à medida que o Estado assumia enormes poderes econômicos. Assim, o grande estímulo para a construção de indicadores, por exemplo, decorreu do desejo de que o governo estabilizasse o nível de preços. Os liberais austríacos criticam tais métodos positivistas. Argumentam que o conhecimento necessário para afetar essas intervenções simplesmente não está disponível. Mas em vez de reconhecer que não sabe, o Estado finge que sabe. As considerações foucaultianas e austríacas são semelhantes entre si na medida em que atacam a racionalidade política. Eles percebem que as intervenções nos mercados ou na sociedade são, na maioria das vezes, restrições maliciosas da liberdade individual: são ferramentas com as quais o Estado exerce o seu poder.
When Foucault and the Austrian Liberals Agreed on the Impossibility of Political Rationality, por Parv Tyagi, foi publicado originalmente em Promarket (August 9, 2023).
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