A crise na esquerda diante da crise do capital, por Henrique Almeida de Queiroz
A realidade soterrada pela implosão de narrativas
A crise na esquerda diante da crise do capital
Por Henrique Almeida de Queiroz
Não é de hoje que a dúvida se tornou componente fundamental da prática científica. Perscrutar o funcionamento da realidade é a base do pensamento científico moderno. O questionamento da validade das propostas intuitivas que o antecedia, a apreensão de certezas íntimas seguida de deduções, derivações “rigorosas” e sistemáticas delas conduzidas, deu lugar a maior amplitude e liberdade na condução deste processo, agora ancorados na análise da concretude mundana. Este questionamento não representou uma ruptura entre o pensamento e a experiência, mas sim a busca da “legalidade” na ordem da realidade a ser expressa pelo pensamento. O que antes era uma antecipação intelectual deveria então ser comprovada pelos fatos: que se demonstre a razão fenomênica pelo seu encadeamento imanente. Dito de forma mais precisa, “É assim que se estabelecerá a verdadeira reciprocidade, a verdadeira correlação entre ‘sujeito’ e ‘objeto’, de ‘verdade’ e ‘realidade’ e que se reproduzirá entre estes termos a forma de ‘adequação’, de correspondência, que é a condição de todo conhecimento científico” (Cassirer, 1994, p. 27).
Atualmente, o questionamento da verdade é levado ao paroxismo pelo pós-modernismo. Na investigação de suas origens, Callinicos (1993) o remonta à crítica da estética modernista, mas este ultrapassou esta área do conhecimento, influenciando o pensamento pós-estruturalista que enfatiza o caráter fragmentário, plural e heterogêneo da realidade na etapa atual do desenvolvimento do capital e a reflexão deste processo de mudança no mundo social, caracterizado então como sociedade pós-industrial. A mudança nas bases filosóficas foi tão significativa que a teoria duvidava das explicações sobre parâmetros dos grandes movimentos da história, apresentando como alternativa a fragmentação da verdade, relações de poder e jogos de linguagem sem critérios claros de primazia ou preponderância na leitura da realidade em busca de sua correta descrição. Com a relativização da verdade, ela passou a ter dificuldades não só para compreender historicamente as diferenças do mundo real, mas também para entender as próprias diferenças nas formas teóricas de sua expressão.
Como já foi apontado por este blog recentemente, os impedimentos que o pós-modernismo legou à construção do conhecimento científico e a busca pela verdade estão incrustados nas universidades e, por isso, são onde estas questões estão mais firmemente enraizadas e amplamente debatidas. Com sinal trocado, enquanto portadora de ideais na esquerda ao declarar comprometimento com noções críticas, éticas e emancipatórias, ela impõe limites intransponíveis ao bloquear alternativas verdadeiramente transformadoras e alinhar-se a tradições que se colocam como terceira via diante das contradições do sistema capitalista: “Seu sentido mais profundo está no cancelamento das alternativas políticas” (Anderson, 1999, p. 108). Entretanto, a influência destes posicionamentos não está restrita ao ambiente acadêmico. Se o maio de 68 impactou profundamente a importância da história e da razão em sua relação com a verdade na descrição da realidade pela esquerda, hoje, seus reflexos ultrapassam a discussão teórica e são utilizados de maneira coerente pela retomada política e econômica das ideias extremistas de direita.
A cada crise do capital, novas questões surgem. Elas carregam consigo marcas da história e, em maior ou menor medida, das expressões intelectuais que as descreveram. A crise de 1929 trouxe o papel do estado como responsável pela retomada da acumulação e, na extrema-direita da época, a idealização de um passado glorioso que levou a conflagração da segunda grande guerra na disputa interimperialista. A crise de 2008 em diante retoma essa discussão anterior, mas incorpora marcas novas, como a projeção de um futuro distópico conduzido pelas grandes corporações de tecnologia — apresentadas como saída para a retomada da acumulação e a estabilização da crise —, marca característica dos chamados gestores do apocalipse. E os reflexos intelectuais sobre tais circunstâncias podem influenciar na condução destas decisões.
A estagnação do capital, como demonstram os dados da Liga Internacional dos Trabalhadores sobre as quinhentas maiores empresas mundiais (excluindo a China), é um elemento importante para entendermos as recíprocas determinações entre o pensamento e sua influência na condução das decisões econômicas e políticas.
A recuperação das taxas de acumulação vem sendo objeto de intensa discussão e apresentação de soluções das mais diversas. E aqui é onde o cancelamento de alternativas, geradas pela profunda transformação no aspecto intelectual anteriormente mencionado, entra como caráter explicativo deste desenraizamento da esquerda com as questões prementes da classe do trabalho e da própria humanidade enquanto um todo. Se a esquerda não apresenta reais alternativas, frustra expectativas e abre espaço para seus adversários e inimigos.
Ainda em 2018 Matt McManus capturou estas diferentes posições antagônicas dentro do pós-modernismo na atual polaridade política. A saída pela esquerda significa a inclusão e aceite de identidades localizadas às margens para dentro do sistema de reconhecimento do capital. Seu outro polo aponta para o reconhecimento de identidades conservadoras que questionam esta mesma inclusividade. Propostas de transformações profundas das relações sociais de produção não entram em debate, mas sim quem tem a capacidade de melhor ajuste na condução da política econômica do capital, ou seja, a inclusão dos historicamente oprimidos e excluídos do sistema de exploração econômica nas tomadas de decisão ou a manutenção da pequena parcela da população tradicionalmente associada ao poderio econômico e político. Nos dizeres de McManus:
“A diferença entre os dois é uma questão de ênfase. A política identitária pós-moderna de esquerda tende a se preocupar em derrubar o poder de grupos tradicionalmente dominantes. Suas críticas são direcionadas a figuras como homens brancos heterossexuais, que são percebidos como intrinsecamente opressores. Por contraste, a política identitária pós-moderna de direita tende a se preocupar em reafirmar o poder desses mesmos grupos tradicionalmente dominantes diante desses ataques. Em sua forma menos extrema, critica as chamadas ‘elites’, que formulam conhecimentos e valores considerados hostis aos grupos identitários dominantes, desqualificando suas afirmações como ‘fake news’ ou contrapondo a elas ‘fatos alternativos’. Já os conservadores pós-modernos mais extremos veem essas elites como aliadas de imigrantes, refugiados, de uma subclasse criminosa e de outros indivíduos cuja presença no país é considerada uma ameaça à coesão social e à manutenção da tradição. Isso pode levá-los, ocasionalmente, a expressar sentimentos xenofóbicos e até racistas, em termos conspiratórios e paranoicos.”
Quem apresenta saídas para a crise de acumulação na atualidade é a extrema-direita. Pela exacerbação da lógica do capital, desde o ataque aos serviços públicos voltados à classe trabalhadora e passando novamente por ideias de um passado glorioso, a extrema-direita vem apostando cada vez mais em governos com capacidades imediatas de respostas a estas dificuldades. Acompanhamos com bastante receio os tambores da guerra que ressoam como solução para a estagnação e a erosão dos sistemas democráticos do velho imperialismo. Estes são os reflexos mais visíveis nos noticiários. Nesta seara, a novidade é a panaceia ultratecnológica como proposta resolutiva de contradições que se encontram nas relações sociais de produção e não na ampliação da produção em si. Neste sentido, o que está em discussão é a norma pela qual a retomada da acumulação deve ser realizada e não em mudanças estruturantes na forma de produção e distribuição da riqueza social.
Não é de se estranhar, portanto, que as personificações desta situação crítica se dê em figuras reacionárias do conservadorismo que cada vez mais se aproximam da condução dos governos de estados nacionais. Nada mais apropriado que o atual nível de contradições do capital esteja representado também por figuras aparentemente contraditórias, mas no qual a extrema-direita declara abertamente suas intenções. E elas se utilizam desta crise para relativizar a verdade e conduzir seus reais interesses econômicos e políticos. E a esquerda pós-moderna, lastreada por concepções éticas e críticas insuficientes para desobstruir e descortinar a realidade, não possuem em sua agenda uma real capacidade de transformação por desconstruir aparências, enquanto os verdadeiros problemas das relações sociais de produção se escondem nos escombros de disputas narrativas de semelhante quilate, com valores trocados.
Referências
Anderson, P. (1999). As origens da pós-modernidade. Jorge Zahar.
Callinicos, A. (1993). Contra el postmodernismo: una crítica marxista. El Áncora.
Cassirer, E. (1994). A filosofia do Iluminismo. Editora da Unicamp.