A odiosa CLT e seus descontentes como sintoma, por Leandro Theodoro Guedes
No capital atrófico brasileiro, o cenário se agrava na medida que a superpopulação estagnada tende a crescer
A odiosa CLT e seus descontentes como sintoma
Por Leandro Theodoro Guedes (@theodoroguedes93)
Um fenômeno que vem sendo notado em pesquisas de opinião e ganhou destaque na mídia mais recentemente é a revolta dos jovens contra a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), ou contra o vínculo de trabalho formal. Não queremos tomar esse movimento como hegemônico e sabemos que o assunto é controverso, mas é um fato a insatisfação contra as condições de trabalho e os baixos salários. Também é um assunto particularmente importante, pois vem na esteira de transformações na legislação, como a reforma trabalhista e o debate sobre a pejotijzação no STF. De certa forma, está colocado o inalterado protagonismo do conflito classista no debate público. Como consequência desse debate estão as alternativas possíveis para a libertação do trabalho formal e nisso não se pode desprezar a força que o discurso do empreendedorismo e das iniciativas individualistas adquire no contemporâneo.
Inicialmente, é importante destacar que a revolta contra o vínculo formal não chega a ser um fenômeno novo. As investigações da sociologia industrial, já na década de 1950, indicavam um movimento muito semelhante com trabalhadores industriais. O trabalho de Juarez Lopes, Sociedade Industrial no Brasil, coleciona vários relatos de trabalhadores da capital paulista que rejeitavam o aprisionamento do vínculo e os baixos salários, expressando a vontade de passarem a trabalhar por conta própria, seja em pequenos negócios comerciais ou retornando para seus municípios de origem em pequenas propriedades rurais. Ainda que os anseios de hoje sejam distintos por conta da própria reconfiguração da economia nacional, mais concentrada em serviços e com novas áreas abertas pelas redes sociais, as reclamações manifestas não parecem tão diferentes.
O caráter atrófico do capital nacional, configurado pelo lento e retardatário desenvolvimento de uma indústria de transformação, que não foi acompanhado por uma revolução social que colocasse abaixo as bases coloniais do país, resultou também numa regulação rebaixada do trabalho assalariado. Há evidências, por exemplo, de que a própria CLT não foi suficiente para aumentar o padrão salarial (IANNI, 1979). Estabeleceu-se um padrão que não significou uma melhora significativa na vida dos trabalhadores que sempre viveram assombrados pela carestia e dificuldades de toda ordem. O rebaixamento salarial foi também instrumento de política econômica que sustentou o “milagre econômico” dos anos 1970, e juntamente com as péssimas condições de trabalho e a repressão, fez ressurgir o sindicalismo. Hoje, essas condições permanecem, ainda que tenham sido atenuadas nos ciclos econômicos de alta do início desse século. As conquistas dos trabalhadores no Brasil nunca se deram de maneira completa e sempre foram alvo de ataques. Isso também vale para o esboço de bem-estar social contido na Constituição de 1988, hoje quase totalmente erodido com espoliação do fundo público e de sua base de financiamento.
Logo, motivos não faltaram e não faltam para a aversão ao trabalho com vínculo formal. Isso não significa, contudo, que o fenômeno atual não mereça melhor averiguação. Na última década, a Reforma Trabalhista colocou em xeque a própria CLT, garantindo a sobreposição do “negociado sobre o legislado” e uma expansão maior das terceirizações, o que poderia indicar uma diminuição substancial dos vínculos formais. Uma primeira aproximação do problema pode ser obtida com a avaliação das mudanças na posição de ocupação e na categoria de emprego. Analisando um período mais longo, desde 2012, o movimento mais significativo observado foi o aumento dos trabalhadores por conta própria (22% naquela oportunidade, 25% atualmente). Segundo os dados da PNAD, comparando 2012 com 2016 (antes da reforma) e 2025 em termos percentuais, temos o seguinte quadro:
Tabela 1: Contingente da força de trabalho ocupada por posição
Fonte: PNAD Trimestral. Total de pessoas por posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal
É possível ver como não há mudanças muito substanciais na estrutura de emprego no país. Efetivamente, portanto, não parece haver um movimento de redução dos vínculos formais em relação à informalidade ou à chamada pejotização (trabalho por conta própria), o que inclusive é sugerido por pesquisas sobre o tema. Ainda assim, existe uma tendência, ainda tímida, de redução no número de empregados e aumento dos trabalhadores por conta própria.
Ainda que a insatisfação contra a CLT não tenha se transformado, portanto, numa redução efetiva da formalidade no Brasil, ela é um fenômeno real que conduz à discussão sobre as alternativas que se apresentam aos trabalhadores.
E as possibilidades estão restritas à migração do trabalho formal para o trabalho por conta própria, ou para a ocupação de empregador. Considerando os números, a possiblidade do trabalho por conta própria parece ser a mais real, pois abriga um número maior de pessoas e tem aumentado na última década, como vimos na Tabela 1. Vejamos a comparação de rendimento e horas trabalhadas para as categorias.
Tabela 2: Rendimento mensal real e horas trabalhadas habitualmente por ocupação
Fonte: PNAD Trimestral. Rendimento médio mensal real das pessoas de 14 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência com rendimento de trabalho, habitualmente recebido no trabalho principal (Reais), Média de horas efetivamente trabalhadas na semana de referência no trabalho principal das pessoas de 14 anos ou mais de idade (Horas)
É ainda marcante uma diferença substancial entre o rendimento por hora trabalhada entre empregados e trabalhadores por conta própria, pois o último permanece o estrato com menor rendimento por hora, mesmo tendo aumentado numericamente. Empregadores estão acima, mas ainda constituem um contingente muito baixo da força de trabalho ocupada no país. Há ainda um agravante, na medida em que o maior contingente de trabalhadores por conta própria é informal, o que reduz a proteção social (como acesso à seguridade) e também é um fator de reclamação, inclusive notado por pesquisas de opinião, para quem prefere o vínculo formal. Entre o ruim e o pior, tanto o vínculo formal quanto a informalidade assumem uma posição ou outra a depender do momento.
O convite à disrupção e à aventura, a possibilidade de transformar o mundo por meio da criatividade individual, e outros inúmeros clichês, tão propalados pelos entusiastas do empreendedorismo, podem, em casos singulares, ilustrar alternativas melhores do que o vínculo formal, mas, no quadro geral, elas têm se apresentado como uma alternativa pior em termos de dedicação e rendimento do que o extenuante vínculo formal. Mas todo esse contexto não pode ser tratado como uma anormalidade.
Marx explicou como a lei geral da acumulação capitalista produz uma superpopulação relativa, um contingente de trabalhadores sobrantes das ocupações industriais, que são repelidos e atraídos por novos setores até que estes setores estejam saturados novamente, num processo que se repete continuamente. No país mais desenvolvido do capitalismo de seu tempo, a Inglaterra, o autor alemão notou que isso resultava do avanço da implementação da tecnologia na produção. Com as máquinas sendo mais produtivas, os trabalhadores perdiam seus empregos e compunham uma superpopulação flutuante, necessária para a regulação dos salários e para atender as necessidades de acumulação.
No Brasil de hoje, o mesmo fenômeno descrito por Marx se manifesta, mas em uma proporção diferente. Essa divisão do contingente de trabalhadores no Brasil entre empregados e por conta própria mostra não apenas a superpopulação flutuante, mas também, e de modo acentuado, a chamada superpopulação estagnada, que
“proporciona ao capital um depósito inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida cai abaixo do nível médio normal da classe trabalhadora, e é precisamente isso que a torna uma base ampla para certos ramos de exploração do capital. Suas características são o máximo de tempo de trabalho e o mínimo de salário”. (Marx, 2013, p. 718)
No capital atrófico brasileiro, o cenário se agrava na medida que a superpopulação estagnada tende a crescer. A persistente economia restrita no Brasil, tem colocado cada vez mais esse contingente em evidência diante da própria incapacidade de se criar melhores ocupações, da incapacidade de se desenvolver setores complexos, mais produtivos e rentáveis, que utilizem o avanço tecnológico para reduzir o tempo de trabalho.
O paradigma tecnológico brasileiro certamente não é dos casos em que o aumento do capital constante repele trabalhadores pela superpopulação flutuante. Esse paradigma tecnológico rebaixado também resulta em cadeias produtivas mais limitadas, restringindo a própria abertura de novos negócios com maior potencial de rentabilidade. Já vimos neste Blog como a aparente revolução tecnológica por trás da economia dos aplicativos é, na verdade, uma tendência ao paroxismo da organização do trabalho do setor de transportes. Aliás, é um mecanismo histórico de controle da força de trabalho a busca pela redução salarial, senão pelo emprego da tecnologia, por meio da repressão ou das mudanças de legislação, como apontamos acima. Um dado que ilustra as consequências desse processo no Brasil inclusive é a saída de jovens da força de trabalho (que ao menos procuraram emprego no período de 30 dias), uma vez que a qualidade das ocupações é tão baixa (não somente em termos salariais, mas de jornada e outros fatores) que há uma migração de trabalhadores jovens para os limitados benefícios sociais.
A revolta contra a CLT é absolutamente legítima num contexto histórico de empregos ruins e condições de trabalho degradantes. As obrigações impostas por uma relação de trabalho formal não são compensadas pelos benefícios que o vínculo pode proporcionar – a popularidade da PEC que propõe o fim da jornada 6x1 é um bom termômetro do teor dessa revolta. Isso não significa que a saída que se apresenta, a informalidade ou o trabalho por conta própria, seja a solução plenamente desejada. É simplesmente a solução apresentada pela lógica da acumulação e sua dependência de manutenção do contingente de superpopulação relativa. E tudo isso não se dá porque as pessoas desconhecem as alternativas que se colocam. Na verdade, o contínuo saltitar de trabalhadores entre o trabalho por conta própria e o vínculo empregatício formal é menos manifestação de vontade do que a efetivação de tendências do próprio modo de produção.
No podcast citado no começo deste texto as pessoas demonstram certa hesitação tanto para a permanência no mercado formal quanto diante do caminho à informalidade. A revolta contra a CLT é um dos sintomas de profundas questões insolúveis na economia capitalista. O capitalismo e sua lei de acumulação não constroem o mundo de portas abertas para as oportunidades. Antes, trancam-se as portas e condenam as pessoas a escolher entre o que pode ser menos lesivo. As condições para as ricas manifestações engenhosas de criatividade e inovação da humanidade são definitivamente restritas.
A crítica da informalidade e do discurso empreendedor, embora necessária, segue inócua na medida em que apresenta como alternativa nada além da defesa do trabalho formal. Trata-se isto também do pavoroso deserto ideológico no qual a esquerda se vê perdida. A ausência de um debate público mais qualificado dedicado a este problema não surpreende, como temos visto no Resultado Geral. Ao mesmo tempo, políticos antissistêmicos não somente entendem os anseios das pessoas, mas dão respostas assertivas a eles. De uma maneira ou de outra, a saída não é construída, tampouco a compreensão do problema parece estar realmente próxima.
Referências:
Ianni, O. (1979). Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). (3a ed.). Civilização Brasileira.
Lopes, J. B. (2008). Sociedade industrial no Brasil. Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.
Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. Boitempo.