Citação: Lukács, Burnham e a apologia indireta
Já abordamos, neste espaço (aqui e aqui), alguns dos elementos que tornam James Burnham um pensador peculiar. Indicamos que sua trajetória teórica partiu de um estágio de destaque, para rapidamente cair no esquecimento e, finalmente, voltar a ter um papel de moderado destaque. E essas oscilações expressam, na verdade, outras oscilações: em especial mudanças na aceitação popular de correntes econômicas e políticas; o que, por sua vez, acompanham transformações na própria realidade (discutimos isto na 2ª parte deste podcast). Apesar disso, indicamos também que a leitura de Burnham sempre apresentou baixo poder explicativo, devendo seu destaque à sua capacidade de organizar ideias correntes na época. Quanto a essa capacidade organizativa e suas motivações, a passagem abaixo, escrita num momento em que Burnham já era reconhecido por poucos, é de grandíssimo valor:
“A tentativa mais conhecida e eficiente de encontrar uma base teórica nova e mais eficaz por meio de uma mudança de rumo em direção à apologética indireta tão eficazmente utilizada por Hitler e seus ideólogos é o livro The Managerial Revolution, de Burnham. Nele, pode-se ver com grande clareza um desejo de assimilar e desenvolver a estrutura decisiva da apologética indireta: Burnham não pretende negar as contradições do capitalismo monopolista, nem simplificá-las como uma “perturbação” de fácil remoção. Pelo contrário, encara essas contradições, da mesma forma como Hitler o fez, como ponto de partida, procurando obter de sua análise uma nova e atraente perspectiva demagógico-social. Como se trata de um renegado trotskista, é muito fácil para ele operar com a equiparação entre o bolchevismo e o fascismo. Como complemento tomado diretamente da tecnocracia (cujo germe se encontra já em Thorstein Veblen), ele acrescenta o expediente que consiste em sustentar que também sob o capitalismo normal se opera um processo análogo, a saber, que os próprios capitalistas, possuidores legais dos meios de produção, se distanciam cada vez mais da produção, participam de forma cada vez menos ativa de sua direção, deixando que os altos funcionários, os managers de Burnham, ocupem esse lugar. Como todas as “sabedorias” da apologética atual, também esta é, naturalmente, uma sabedoria muito antiga. Já em 1835, em sua Philosophy of Manufacturs, Ure chamava o manager de “a alma de nossas empresas”. Burnham, como em seu tempo fez o hoje convertido em clássico Malthus, não é apenas um sicofanta inescrupuloso, mas também um plagiador descarado da literatura econômica esquecida do passado. O domínio efetivo dos managers é, portanto, segundo Burnham, o grande princípio comum no atual desenvolvimento da economia; ele se impõe – sob formas politicamente distintas – do mesmo modo no socialismo, no fascismo ou nos Estados Unidos. Assim, Burnham dissolve – como em sua época fizeram os ideólogos do hitlerismo e como hoje fazem os semânticos – todas as diferenças e todos os antagonismos socioeconômicos entre os diferentes sistemas. Surge assim uma noite semântica desprovida de conceitos, em que um funcionário ou diretor de fábrica comunista torna-se igual a um gerente capitalista.
Porém, de um modo ou de outro, o certo é que Burnham chega por esse caminho a um esquema de apologética indireta. Como Hitler, ele também tem como pretexto negar demagogicamente o capitalismo. E, como Hitler, ele também nega que a história coloca o dilema de capitalismo ou socialismo; como Hitler, ele também afirma ter descoberto um tertium datur. É claro que, apesar de toda essa profunda afinidade metodológica, as mudanças dos tempos e a diferença do meio em que atuam imprimem seu selo sobre o conteúdo e a forma de ambas as construções. Hitler passa por cima do dilema entre capitalismo ou socialismo com a ajuda de um mito irracionalista capaz de provocar fortes emoções (que parte do desespero e da sede de libertação das massas na crise de 1929). Burnham também esboça os traços intelectuais de um mito, mas o faz no tom sóbrio e frio da árida “cientificidade” objetiva. Ora, enquanto em Hitler o conteúdo essencial da ideologia proclamada decorre diretamente da solução mítica do dilema, Burnham tenta separar com exatidão e firmeza a colocação científica (o mito) e a ideologia; mas dessa questão trataremos com detalhes mais adiante. Já essa diferença de tom revela a diferença das épocas e das circunstâncias em que é preciso agir, repercutindo fortemente na própria metodologia, como se pode ver pelo que já foi dito aqui. Por mais cínico que Hitler tenha sido como chefe de propaganda e verdugo do capitalismo monopolista, ele podia contar com o fato de que os mitos proferidos por ele arrastariam consigo as massas desesperadas. Mas o que é que Burnham podia esperar de seu mito? A apologética indireta do capitalismo monopolista, do qual ele surge como profeta, só pode ter, no melhor dos casos, “uma circulação da elite” (Pareto). Ante uma comoção social realmente profunda, isso só pode consistir numa ideologia consolatória para a burguesia e para a intelectualidade burguesa”.
A Destruição da Razão, G. Lukács (2020).