Entre o fantasma gerencialista, o terror econômico e a ameaça apocalíptica, por Thiago Martins Jorge
Quando o inimigo habitual parece menos ameaçador que inimigos futuros
Entre o fantasma planificador, o terror econômico e a ameaça apocalíptica
Por Thiago Martins Jorge (@ThiagoMarJor)
Publicamos recentemente, neste blog, a tradução do texto de Branko Milanović intitulado O gerencialismo de James Burnham oitenta anos depois. Esse texto apresenta especial valor não por sustentar uma defesa tardia do gerencialismo de Brunham, - Milanović afirma, em termos literais, que Brunham estava sim errado -, o que chama atenção, no entanto, é que ele parece estar menos errado, hoje, do que aparentava estar poucos anos após ter escrito o texto seminal.
Ao longo do texto, o próprio Milanović arrisca uma explicação para esse fenômeno curioso. Nas suas palavras: “alguns aspectos do controle estatal [chinês] sobre o setor privado e, consequentemente, a incapacidade da classe capitalista de controlar o Estado, podem ser vistos como as características típicas ideais da sociedade gerencial burnhamita”.
Antes, no entanto, de nos debruçarmos sobre o que faz do gerencialismo burnhamita uma ideia mais sedutora no tempo presente, vale a pena reforçar o que faz dele uma ideia errada independente da quadra histórica em que nos encontremos.
O movimento de fundo, que motivou as diversas ideações do gerencialismo (seja em Burnham, seja, por exemplo, em Duménil e Lévy), é: a mudança do agente tomador das decisões econômicas fundamentais de uma organização social, aliada à assunção que é o agente decisório que define o modelo de organização social. Ou seja, se o agente decisório relevante são os capitalistas, estamos na sociedade capitalista, se o agente decisório relevante são os gestores, estamos numa sociedade gerencial.
Acreditamos, no entanto, que esta forma de colocar o problema está profundamente equivocada. Parece-nos que, mais determinante do que o agente decisório, são os elementos condicionadores das decisões. Estamos nos referindo, desse modo, a elementos motivadores, objetivos/finalidades e obstáculos a serem superados. Em suma, ainda que gere alguma controvérsia, o fato é que tanto empresas familiares (corriqueiramente geridas pelos proprietários) quanto grandes empresas geridas por uma imponente hierarquia de gestores profissionais buscam a maximização dos lucros.
Podemos inclusive destacar que, ainda que empresas estatais possam, eventualmente, se afastar da maximização de seus lucros (mantendo, por exemplo, preços “subsidiados” para atender determinado interesse social), o imperativo da lucratividade ainda se faz presente. A pressão gerada quando se renuncia uma receita na casa de milhares de dólares é bem diferente de quando se recusa dezenas de milhões de dólares.
Na prática, portanto, a mudança decisória no comando das empresas nem mesmo arranha a lógica constituinte do modo de produção capitalista. Na contramão disso, expressa, na realidade, o resultado, quase que inevitável, do processo de acumulação de capital (que está impresso no DNA capitalista). Ainda que devemos não apenas reconhecer, mas enfatizar, que o surgimento das grandes corporações é um fenômeno bastante relevante. Mas por quê?
Em poucas palavras e sem enfrentarmos todas as variáveis que permeiam a questão, o surgimento das grandes corporações e da gestão profissional marcam um salto na eficiência da condução de atividades produtivas e distributivas essenciais para o gênero humano. Obviamente que esse salto não seria tão impressionante sem o desenvolvimento tecnológico que acompanhou o processo, mas o fato é, ainda que com ressalvas, que essas duas coisas se potencializaram.
Por outro lado, esse salto na eficiência de atividades produtivas, distributivas e até mesmo na condução das atividades estatais não necessariamente culmina no aumento da eficiência da organização social como um todo. O erro potencialmente mais decisivo na premonição burnhamita é o fato de que a organização social (independentemente do nome) não seguiu a trilha de uma maior planificação econômica. Nessa linha, por exemplo, o problema das grandes crises econômicas, que por alguns anos parecia superado, voltou a assombrar a humanidade sem quaisquer ressalvas.
Mas se Burnham estava e continua errado, por que Milanović o teria ressuscitado? Como recuperamos no início do texto, o sérvio indica que o modelo de gestão política adotado em solo chinês possui semelhanças ao que havia sido idealizado por Brunham. E, a isso, ele acrescenta que:
Apesar do tom ponderado adotado por Milanović, parece inegável que há elementos no horizonte econômico e político que reforçam a sua posição. A essa altura dos acontecimentos, a incapacidade dos gestores políticos (aqueles que ocupam posições estratégicas na esfera do Estado) apresentarem respostas adequadas aos problemas de fundo, que eclodiram de forma contundente na crise de 2008, combinada com a falta de um protagonismo mais sério dos gestores econômicos das grandes corporações, criou um grande contraste com o sucesso prolongado do “gerencialismo chinês”.
Mesmo o debate político-econômico que vinha, já por algumas décadas, sendo dominado por posições economicamente ortodoxas, parece ao menos pender para o lado contrário. E, nessa linha, podemos notar também um certo clamor para que os gestores políticos sejam (ou voltem a ser) mais atuantes.
É igualmente notável, no entanto, que esse clamor, via de regra, é feito com ressalvas. Utilizando o debate econômico brasileiro como referência, notamos que a linha argumentativa que mais vem reverberando é aquela que defende uma atuação conjunta entre Estado e Mercado, ou, em termos menos mitológicos, gestores políticos e gestores econômicos (principalmente gestores de grandes empresas e instituições financeiras).
Na prática, essa atuação conjunta aconteceria com uma clara e indispensável separação de papéis. O Estado entraria com crédito e incentivos, enquanto os gestores econômicos desenvolveriam e executariam os projetos. Com alguma boa vontade, poderíamos dizer que o protagonismo estaria sendo dividido. Numa analogia esportiva, podemos dizer, no entanto, que os pontos (ou os gols) ainda seriam marcados pelos gestores das grandes empresas. E mesmo quando olhamos para a chamada “bidenomics”, ainda que o problema de fundo - a estagnação econômica - seja reconhecido, ainda parece forçoso apontar uma influência do gerencialismo chinês na sua concepção
Cabe inclusive reforçar que, ainda que estejamos falando em gestores políticos de um lado e gestores econômicos de outro, há uma grande distância entre este “gerencialismo” e o “gerencialismo burnhamita”. Enquanto, no segundo, a planificação da atividade econômica é um ponto decisivo, no “gerencialismo realmente existente” a regra é a planificação atomística (planejamento empresarial realizado nos limites da própria empresa) e a “desplanificação social”.
Em termos mais precisos, o funcionamento típico do modo de produção capitalista pauta-se pelo mecanismo regulador impessoal do mercado (lastreado no valor). Isso implica no fato de que o planejamento empresarial, ainda que feito meticulosamente, esbarra nas incertezas inerentes ao funcionamento do modo de produção capitalista. Desse modo, quando o Estado se limita à função de incentivar a atividade econômica - ainda que o faça com cifras maiores que no passado -, isso, por si só, nem mesmo arranha o funcionamento desse modo de produção.
Parece-nos, portanto, que ainda que a realidade econômica crie fortes incentivos para que novas ideias surjam e se materializem em novas ações, o pragmatismo dos gestores políticos, até o presente momento, não parece diminuir, mas apenas esboçar um ajuste a um contexto diferente. Milanović, por outro lado, parece antever o fracasso desse ajuste e, consequentemente, a necessidade de abertura para outras fórmulas gerenciais. E o modelo chinês seria a inspiração óbvia.
Além disso, a histeria gerada diante da necessidade de regular novas atividades (como, em especial, o caso da Inteligência Artificial), condiciona os gestores políticos a adotarem linhas de ação mais duras e, portanto - ao menos no nível discursivo -, contribuem para a impressão de que o Estado está se agigantando. Na prática, no entanto, pelo menos até o presente momento, a ação regulatória dos Estados mais diretamente envolvidos com o desenvolvimento da IA têm sido marcada pela cautela e também por uma certa lentidão. Essa lentidão contrasta com recorrentes manifestações de preocupação, tanto por gestores quanto por pesquisadores atuando no desenvolvimento da Inteligência Artificial (inclusive, já nos referimos, neste blog, aos “Gestores do Apocalipse” e voltaremos a eles em breve).
Em síntese, de um lado, os desafios econômicos e a urgência em regular novas atividades criam um cenário favorável para a defesa de modelos de ação mais gerencial. Ou, em outras palavras, os riscos da paralisia organizativa, diante da conjuntura econômica e do avanço tecnológico, parecem impor consequências muito mais assustadoras do que as ameaças trazidas pelos velhos fantasmas que acompanham a ideia de “gerencialismo” (comunismo, burocracia, etc.). Por outro lado, há ainda poucos indícios que a ação dos gestores políticos esteja em vias de protagonizar uma grande reviravolta. Paira, portanto, a dúvida se as ameaças impostas serão capazes de reverter essa paralisia.