Citação: M. Friedman e o "neoliberalismo" como método
Já chamamos a atenção outras vezes neste blog (aqui , aqui e aqui) para a renovação do liberalismo a partir dos anos de 1930 que, de certa maneira, iguala variantes ideais aparentemente antagônicas, tais como nas figuras de Hayek e Keynes. Há uma comunhão de princípios e divergências quanto aos meios de administração da acumulação capitalista. Trazemos abaixo a citação de M. Friedman como um exemplar de avaliação que ajuíza essa questão em termos de diferença de método de administração da economia capitalista. O “neoliberalismo” proposto pelo autor recusaria tanto o laissez-faire quanto o que Friedman chama “coletivismo” em favor do fomento à “ordem competitiva” como método (alegadamente) superior para aquela administração da economia capitalista. É uma disputa de métodos dessa administração sob a rubrica do que chamamos de “neoliberalismo histórico”: o simultâneo abandono da antiga ortodoxia liberal e o pavor a expressões “socialistas”, admitindo modos de atuação do Estado na administração política da vida econômica da sociedade. Não deixa de ser muito curioso que um protagonista da linhagem de Freedman reconheça abertamente algo que os gestores “progressistas” do capital insistem em obscurecer: que entre eles e seus “adversários” está muito mais uma questão de método. E nessa questão, irmanam-se.
A maior falha da filosofia coletivista que dominou o mundo ocidental não está em seus objetivos — os coletivistas querem fazer o bem, manter e estender a liberdade e a democracia e, ao mesmo tempo, melhorar o bem-estar material das grandes massas de pessoas. A culpa está mais nos meios. Falhas em reconhecer a dificuldade do problema econômico de coordenar com eficiência as atividades de milhões de pessoas levaram a uma prontidão para descartar o sistema de preços sem um substituto adequado e a crença de que é fácil de fazer muito melhor com um plano central. Juntamente com uma superestimativa da extensão do acordo sobre objetivos detalhados, levaram à crença de que se poderia alcançar um acordo generalizado em um “plano” expresso em termos precisos e, portanto, evitar os conflitos de interesse que poderiam ser resolvidos apenas por coerção. Os meios que os coletivistas procuram empregar são fundamentalmente inconsistentes com os fins que procuram atingir. Um Estado com poder de fazer o bem pela mesma razão está em posição de causar danos; e há muitas razões para acreditar que o poder mais cedo ou mais tarde cairá nas mãos de quem vai usá-lo para fins malignos.
A crença coletivista na capacidade de ação direta do Estado para remediar todos os males é ela mesma, no entanto, uma reação compreensível a um erro básico na filosofia individualista do século XIX. Essa filosofia quase não atribuía papel ao Estado, exceto a manutenção da ordem e a execução de contratos. Era uma filosofia negativa. O Estado só poderia causar danos. Laissez faire deveria ser a regra. Ao tomar esta posição, subestimou o perigo de que indivíduos poderiam, por meio de acordos e combinações, usurpar o poder e limitar efetivamente a liberdade de outros indivíduos; não conseguiu ver que havia algumas funções que o sistema de preços não poderia executar e que, a menos que essas outras funções fossem de alguma forma previstas, o sistema de preços não poderia cumprir com eficácia as tarefas para as quais está admiravelmente equipado.
Uma nova fé deve evitar ambos os erros. Deve dar lugar a uma limitação severa no poder do Estado de interferir nas atividades detalhadas dos indivíduos; ao mesmo tempo, deve explicitamente reconhecer que existem funções positivas importantes que devem ser desempenhadas pelo Estado. A doutrina às vezes chamada de neoliberalismo, que tem se desenvolvido mais ou menos simultaneamente em muitas partes do mundo e que nos EUA está associada particularmente ao nome de Henry Simons, é essa fé. Ninguém pode dizer que essa doutrina triunfará. Alguém poderia dizer apenas que ela é de muitas maneiras idealmente adequada para preencher o vácuo que me parece estar desenvolvendo-se nas crenças das classes intelectuais em todo o mundo.
O neoliberalismo aceitaria a ênfase liberal do século XIX nos fundamentos da importância do indivíduo, mas substituiria a meta do século XIX de laissez faire como meio para esse fim, pela meta da ordem competitiva. Procuraria usar a competição entre os produtores para proteger os consumidores da exploração, a competição entre os empregadores para proteger os trabalhadores e proprietários de bens, e a concorrência entre os consumidores para proteger as próprias empresas. O Estado iria policiar o sistema, estabelecer condições favoráveis para concorrência e evitar o monopólio, fornecer uma estrutura monetária estável e aliviar a miséria e angústia. Os cidadãos seriam protegidos contra o Estado pela existência de um mercado privado; e uns contra os outros pela preservação da competição.
Neoliberalismo e seus Prospectos, M. Friedman 17 February 1951.
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