Equilíbrio fiscal ou meu pirão primeiro? Mercado, Governo Lula e a Disputa pelo Orçamento Público, por Thiago Rezende
A recente derrota do governo no caso do IOF e suas explicações demonstram como se dá a disputa pelo fundo público no Brasil
Equilíbrio fiscal ou meu pirão primeiro? Mercado, Governo Lula e a Disputa pelo Orçamento Público
Por Thiago Dutra Hollanda de Rezende
A decisão do Congresso Nacional de derrubar o aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) proposto pelo governo Lula expôs um paradoxo na política econômica brasileira. De um lado, o ente mercado financeiro aplaudiu o recuo do tributo, “ficou aliviado” em relação à rentabilidade e custos de suas operações com a derrubada do decreto. Por outro lado, essa vitória do mercado abriu um buraco de cerca de R$ 10 bilhões nas contas deste ano, obrigando o Ministério da Fazenda a encontrar novas formas de ajuste. O ministro Fernando Haddad, sem a receita extra do IOF, vê-se num dilema sobre onde cortar gastos: insistir em reduzir alguns privilégios, como os supersalários do alto funcionalismo e subsídios a empresas, ou ceder às pressões do próprio mercado, que prefere ajustes via arrocho salarial e corte de despesas sociais. Este episódio também revela como o “mercado”, que se vende como guardião da responsabilidade fiscal e da racionalidade contábil, na prática atua para defender interesses de classe quando se disputa a apropriação do fundo público.
A imagem do ente místico mercado como defensor da eficiência e do equilíbrio tem raízes profundas no pensamento econômico mais difundido, o chamado mainstream. No final do século XIX, economistas da chamada “revolução marginalista”, ou da economia vulgar, conceberam a economia de mercado como um mecanismo autorregulado e naturalmente eficiente. Em seus modelos teóricos, a livre concorrência faz os preços se ajustarem pela oferta e demanda até alcançar um preço de equilíbrio de mercado, alocando recursos de forma ótima e “racional”. Walras, principal formulador da teoria de equilíbrio geral, chegou a tratar fenômenos econômicos como o valor de troca como “fatos naturais”, dados objetivamente uma vez por todas, independentemente de intervenções humanas ou políticas. Essa visão postulava leis econômicas universais e neutras, conferindo à busca do equilíbrio fiscal e da máxima eficiência alocativa um status quase científico e apolítico. A ideologia da eficiência de mercado e do equilíbrio ganha aqui base alegadamente científica: se o mercado tende ao ótimo por si só, então intervir ou desviar recursos (por exemplo, via gasto social elevado ou tributação progressiva) seria ir contra uma ordem natural das coisas.
Essa pretensa neutralidade oculta o essencial: a economia capitalista é atravessada por conflitos de classe e relações de poder. Decisões sobre orçamento, tributos e gastos não ocorrem num vácuo técnico, e sim num campo de batalha em que grupos ou frações de classes com interesses distintos disputam quem arca com os custos e quem fica com os benefícios. Assim, aquilo que a ortodoxia trata como gestão racional é, na verdade, uma ideologia que naturaliza os interesses do grupo ou fração de classe economicamente dominante.
A Neutralidade Técnica como Fachada Ideológica
No debate fiscal contemporâneo do Brasil, é nítida a presença dessa fachada de neutralidade técnica, frequentemente brandida pelo “mercado” e por analistas econômicos mainstream, abraçados pelas principais colunas econômicas em texto escrito, áudio ou vídeo. O discurso em prol do ajuste austero costuma vir embalado em jargões tecnocráticos. Fala-se em “sustentabilidade das contas”, “ancorar expectativas”, “responsabilidade fiscal”, termos que sugerem um consenso científico incontestável.
Essa escolha terminológica revela a lógica muitas vezes implícita nas recomendações ditas técnicas: proteger a parte do orçamento que beneficia as camadas privilegiadas, enquanto se apregoa a necessidade de cortar gastos com os mais vulneráveis. O mercado e seus porta-vozes apresentam tais medidas como meramente racionais do ponto de vista contábil, quase como se não houvesse alternativa, afinal, “é preciso fechar a conta”. Porém, a seletividade dessas opções denuncia seu conteúdo político. A neutralidade alardeada termina quando se discute mexer em privilégios; aí, o receituário muda ou a proposta simplesmente trava. A racionalidade contábil propugnada é seletiva: somente alguns números da planilha preocupam, ao passo que outros, tipicamente os que afetam os de cima, permanecem intocados.
Um trecho célebre do Livro III de O Capital ilumina essa mistificação: “Em DD’, temos a forma mais sem conceito do capital, a inversão e a coisificação das relações de produção elevadas à máxima potência: a forma simples do capital, como capital portador de juros, na qual ele é pressuposto a seu próprio processo de reprodução; a capacidade do dinheiro ou, conforme o caso, da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independentemente da reprodução – eis a mistificação capitalista em sua forma mais descarada.”[1] Para Marx, essa forma fetichizada do capital (o dinheiro que aparentemente “se valoriza por si mesmo”) é um achado magnífico para a economia vulgar, pois torna invisível a exploração do trabalho e transforma o capital em fonte autônoma e quase mágica de valor. Aplicada ao debate fiscal atual, essa crítica ajuda a entender como o capital financeiro se apresenta como portador de racionalidade e eficiência, ao mesmo tempo em que naturaliza sua apropriação do fundo público como se fosse fruto de um processo neutro e técnico. A separação aparente entre o capital portador de juros e o processo produtivo é também a separação entre o discurso fiscal e a realidade da luta de classes pelo orçamento.
O Ajuste Fiscal Seletivo: O que o Mercado Quer Cortar
As propostas defendidas pelo mercado financeiro para equilibrar as contas públicas ilustram claramente essa lógica seletiva. Elas focam quase sempre em reduzir despesas obrigatórias e direitos sociais, evitando enfrentar a necessidade de aumentar receitas de forma progressiva. Conforme resumido pela reportagem do UOL Economia, as medidas preferidas pelos analistas de mercado incluem:
Salário mínimo sem aumento real: congelar o salário mínimo por alguns anos, reajustando-o apenas pela inflação e eliminando qualquer ganho real. Em abril, por exemplo, o sempre lembrado ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga sugeriu deixar o mínimo seis anos sem aumento real, para aliviar as contas públicas. Isso significa que os trabalhadores de menor renda veriam seu poder de compra estagnar, comer pior, morar pior, viver pior, tudo sob o argumento racionalíssimo e justificado cientificamente de aliviar pressões fiscais e tornar a economia mais eficiente.
Desvincular benefícios sociais do mínimo: alterar a regra que hoje vincula reajustes de aposentadorias, pensões e seguro-desemprego ao aumento do salário-mínimo. A proposta é limitar esses reajustes apenas à inflação, cortando o efeito cascata que uma valorização do mínimo gera nas despesas da seguridade. Em outras palavras, mesmo que a economia cresça, os benefícios dos mais pobres não poderiam crescer em termos reais, trata-se de uma proposta que já é considerada realmente pelo próprio governo há algum tempo.
Limitar gastos com saúde e educação: reduzir a vinculação constitucional de investimento nessas áreas. A sugestão do mercado é atrelar o crescimento do piso de saúde (15% da receita líquida) e educação (18% dos impostos) ao novo arcabouço fiscal, que limita a alta do gasto a algo entre 0,6% e 2,5% acima da inflação. Essa mudança, segundo a matéria, abriria “folga” de até R$ 190 bilhões em dez anos, ou seja, R$ 190 bi a menos em potencial investimento público em saúde e educação no período, comparado à regra atual. O que hoje já é considerado um orçamento crítico seria mais crítico em um futuro com mais demandas de saúde e educação.
Nova reforma da Previdência: embora o Brasil tenha passado por uma contrarreforma previdenciária importante em 2019, setores do mercado já defendem outro aperto nas regras de aposentadoria. Com o envelhecimento da população, argumenta-se, sempre racionalmente, que o trabalhador precisará contribuir por mais tempo e receber menos, caso contrário não vai haver dinheiro para sustentar o sistema previdenciário. Trata-se de elevar idades mínimas, tempos de contribuição ou reduzir benefícios futuros, aliviando o Tesouro às custas de quem ainda vai se aposentar (ou não).
Reforma administrativa: mudança estrutural no serviço público, especialmente nas carreiras futuras. A ideia central é reduzir salários iniciais, tornar mais lenta a progressão na carreira e facilitar demissões de servidores que entrarem após a reforma. Essa medida visa conter o crescimento da folha de pagamento no longo prazo, ainda que possa afetar a atratividade e a qualidade do serviço público. O presidente da Fiemg, figura óbvia para opinar sobre este assunto, por exemplo, defende categoricamente o fim da estabilidade para 85% do funcionalismo público.
Vale notar que todas as medidas acima têm algo em comum: o ônus do ajuste recai sobre trabalhadores, servidores ou usuários de serviços públicos (saúde, educação, previdência, assistência social etc.). Não se vê nas listas de depenação do “mercado” propostas equivalentes que onerem os que estão no topo da pirâmide econômica. Pelo contrário, quando o governo tentou justamente aumentar a tributação sobre o capital via IOF, a reação foi imediata e eficaz em barrar a iniciativa, mesmo se tratando de um tributo bem limitado para efeitos de uma real justiça fiscal, dado seu caráter tendencialmente regressivo. O mercado celebrou a não elevação do imposto, embora isso deixasse em aberto como será resolvido o saldo negativo previsto. A solução implícita (e tecno-racional)? Novos cortes e congelamentos de gastos que recaem sobre as políticas sociais.
Um cativante relatório do Banco Mundial divulgado em junho de 2025 ecoa esse receituário e expressa bem o aspecto ideológico da argumentação supostamente racional da defesa da austeridade. Com o simpático nome de “Dois por um: políticas para atingir a sustentabilidade fiscal e ambiental – revisão das finanças públicas no Brasil”, o relatório do Banco Mundial sugere medidas como reduzir salários de entrada no serviço público, retirar o salário mínimo como piso de benefícios sociais (aposentadorias e BPC sempre na mira) e desvincular receitas para saúde e educação. Tudo para “equilibrar as contas públicas”, mas sempre equilibrando pelo lado das despesas sociais, nunca pelo lado da arrecadação dos muito ricos.
Chama a atenção a sutileza de misturar a militância fiscalista pró-capital financeiro com preocupação ambiental. A capa do estudo, cujo link está acima, apresenta uma imagem central com mãos cuidadosas protegendo um broto verde, com gráficos ascendentes e vegetação exuberante ao fundo. Essa imagem constrói uma narrativa de harmonia entre crescimento econômico, responsabilidade fiscal e preservação ambiental. Mas essa estética pastoral esconde o verdadeiro conteúdo do relatório, que propõe cortes em direitos sociais e em salários do funcionalismo, redução do gasto público e flexibilização das vinculações constitucionais, como os pisos para saúde e educação.
Essa proposta de “sustentabilidade fiscal”, um eufemismo para austeridade, é travestida de preocupação ecológica, num exemplo curioso de “greenwashing fiscalista”: vende-se um pacote de medidas regressivas como se fossem benéficas ao planeta e às finanças públicas, sem explicitar quem paga o preço dessas reformas. Como vamos ser a favor da destruição do planeta, afinal? Um outro exemplo digno de citar é um diagrama de Venn na página 10 em que somos levados a considerar como equivalentes positivos a desvinculação de aposentadorias do salário-mínimo ao combate ao desmatamento ilegal.
A seletividade das medidas fiscalistas fica ainda mais evidente quando olhamos o outro lado das opções de ajuste: aquelas que não têm o endosso entusiasmado do mercado. Antes de tentar subir o IOF, está na mira do governo o volume colossal de incentivos fiscais a empresas, cerca de R$ 800 bilhões em renúncias tributárias anuais. Contudo, tais privilégios tributários contam com forte lobby no Congresso, e sua redução enfrenta uma resistência que raramente desperta campanhas midiáticas em nome da “responsabilidade fiscal”, diferentes dos painéis de “impostômetros” que se veem em grandes centros comerciais e da preocupação dos grandes jornais com o “nível exagerado da estabilidade do funcionalismo”.
Da mesma forma, discute-se há quase quarenta anos a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição de 1988, que poderia tornar o sistema tributário mais justo. Porém, esse tipo de medida nunca avançou no Legislativo, diversos projetos foram engavetados ao longo dos anos, o mesmo que ocorre com as tentativas recentes de se discutir a tributação de dividendos e juros sobre o capital próprio, que ajudam a qualificar o Brasil como candidato a paraíso fiscal.
Existe uma discrepância gritante entre o que o establishment financeiro considera ajuste aceitável (cortes de direitos e gastos sociais) e o que se rejeita ou ignora (cortar regalias e cobrar mais dos muito ricos). Essa é a racionalidade contábil seletiva em ação: números que afetam a base da sociedade são tratados como urgentes para o equilíbrio, ao passo que números ligados ao topo (seja um subsídio bilionário, seja a tributação dos endinheirados) permanecem fora da equação preferencial.
No dia 30 de junho, o presidente da República disse que “Um país começa a ser justo pela tributação, e depois continua a ser justo pela repartição”, já após a derrota no caso do IOF, explicando a importância de promover certa justiça tributária e garantir recursos para políticas sociais, por meio da proposta de isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, por exemplo. Realmente, a equidade no sistema de tributação é a base para que haja equidade na alocação do gasto público. Entretanto, isso envolve uma reversão profunda na base tributária do país, uma vez que o sistema tributário vigente está fortemente assentado em tributos regressivos, como é o caso das próprias contribuições sociais, tão perseguidas pelo seu caráter vinculativo e garantidor de recursos para a seguridade social. Essas contribuições, embora fundamentais para o financiamento da seguridade social, possuem um caráter contraditório: ao mesmo tempo em que garantem a vinculação de recursos a direitos sociais, pesam proporcionalmente mais sobre os trabalhadores e os mais pobres, reproduzindo desigualdades. Essa contradição expressa os limites históricos e estruturais do fundo público sob o capitalismo no Brasil, onde a disputa entre capital e trabalho pela apropriação dos recursos arrecadados está condicionada tanto pela forma da tributação quanto pela luta de classes em um contexto em que o capital tem um caráter atrófico. Qualquer tentativa de promoção de alguma justiça tributária não tem como se resumir a ajustes pontuais ou isenções específicas, mas requer uma transformação profundamente qualitativa da forma de financiamento do Estado brasileiro, com ampliação da progressividade, redução da dependência de bases regressivas, fortalecimento da lógica redistributiva e enfrentamento de interesses históricos fortemente ancorados no fundo público no Brasil.
[1] Marx, Karl (2017). O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo.