O caso chinês e a disputa de narrativas, por Thiago Martins Jorge
Enquanto isso, a realidade segue seu curso
O caso chinês e a disputa de narrativas!
Por Thiago Martins Jorge (@ThiagoMarJor) (@thiagomjorge.bsky.social)
A atuação do governo Donald Trump, frente a “ameaça chinesa”, é certamente o fato político-econômico do momento. No entanto, na mesma medida em que a reação estadunidense suga os esforços de analistas e debatedores, intensifica-se também os esforços para classificar o empreendimento chinês (ainda que, até o presente momento, a arena pública siga dominada por narrativas de baixo poder explicativo). Introdutoriamente, podemos indicar que tais esforços se encontram divididos por dois grandes conjuntos de narrativas, que refletem a antipatia ou simpatia dos autores em relação à China. Porém, como indicaremos mais ao final deste texto, ambos os conjuntos pouco avançam sobre o que de fato tornou a China uma potência capitalista (o que tentaremos fazer sumariamente).
Já mencionamos, em outras oportunidades, que o mainstream econômico — principalmente a fração que se declara abertamente liberal — há tempos combate o “autoritarismo” do Estado Chinês. Sem reconhecer o que de fato move suas paixões, tais economistas vêm reiterando que o crescimento econômico, protagonizado pelo Estado Chinês, não só não pode ser sustentado, como desaguará inevitavelmente numa crise de proporções calamitosas. Estamos, portanto, inserindo esse tipo de esforço dentro daquele que chamamos de primeiro conjunto de narrativas.
Devemos, contudo, reconhecer que, dentro desse conjunto, a depender do autor, ora elementos políticos ora elementos econômicos recebem maior atenção. Nessa linha, o que à primeira vista poderia sugerir uma pluralidade analítica, na contramão disso, quase sempre acaba ocultando um certo despreparo ou ao menos desespero em provar um ponto que carece de materialidade. Para o escopo deste texto, é importante salientar que, diante dessa pluralidade, não conseguiremos avançar sobre um elemento universalizante (comum a todas as narrativas) e, a partir dele, provar a fragilidade do todo. Por outro lado, devemos ao menos salientar a fragilidade de um elemento bastante recorrente nesse conjunto e que inclusive é compartilhado, com adaptações, pelo segundo grande conjunto de narrativa (composto pelas narrativas mais entusiasmadas com o projeto chinês).
Aqueles mais familiarizados com as várias Escolas Microeconômicas, certamente, já se depararam com a chamada Economia dos Custos de Transação. Seus adeptos partem do pressuposto de que os agentes econômicos não são capazes de otimizar, em grande escala, a alocação de recursos e por isso o “mercado” surge como a grande solução para essa limitação histórica. Ao mesmo tempo, reconhecem que em contextos particulares e restritos — que inclusive movimentam as pretensões minimamente científicas dessa escola — a coordenação administrativa pode superar a eficiência do sistema de preços (“o mercado”). Portanto, segundo essa escola, haveria um meio termo que deve variar conforme o contexto, mas dentro do qual os agentes podem otimizar a relação entre a coordenação administrativa e o sistema de preços (sem, jamais, descartar o protagonismo deste).
Já abordamos, em outras oportunidades, como Alfred Chandler, um dos expoentes dessa tradição, argumenta que, ao longo do século XX, as grandes corporações se provaram mais eficientes que pequenos negócios, uma vez que, no seu interior, a coordenação administrativa gerou ganhos de escala que dificilmente seriam obtidos de outra forma. Na mesma oportunidade, indicamos também que, por essa posição (ou seja, por apequenar o papel do sistema de preços), o autor vem recebendo duras críticas. Contudo, o que aqui merece destaque é que essas críticas a Chandler são embaladas pelos mesmos acordes que também impulsionam algumas das críticas ao experimento chinês.
Ainda que sem apresentar o mesmo carisma das corporações chandlerianas, para seus críticos, o Estado Chinês tenta impor a substituição do sistema de preços por manobras burocráticas. Tais manobras, tal como a coordenação administrativa no interior das grandes corporações, teriam gerado um sucesso de curto fôlego, mas (segundo os críticos desesperados) logo devem ser superadas por seus rivais pró-mercado, dada a maior eficiência dos mecanismos de mercado.
Poderíamos avançar ainda mais nesse paralelo, no entanto, em nome da brevidade, devemos reconhecer que, do mesmo modo como as grandes corporações seguem dominando o cenário econômico, o sucesso prolongado da economia chinesa também expõe buracos na narrativa anti-China (que não à toa, tem apelado também para teorias conspiratórias).
Por outro lado, devemos admitir também que, do mesmo modo que a coordenação administrativa largamente empregada no interior das grandes corporações não as transformou em unidades econômicas socialistas, as manobras empregadas pelo Estado Chinês também não configuram nem ao menos o esboço de uma transição para além do capital. Essa observação preliminar é importante, uma vez que se formou, dentro daquele segundo conjunto de narrativas que indicamos anteriormente, o argumento de que o sucesso da economia chinesa se deve ao fato desta caminhar para a superação da lógica capitalista.
Devemos admitir, tal como fizemos para o primeiro conjunto, que a radicalidade da asserção (de superação do capitalismo) também varia de acordo com o autor. O que chama a atenção, no entanto, é que apesar disso, é facilmente constatável que esse segundo conjunto de narrativas compartilha — cientes ou não disso — dos mesmos pressupostos que demarcam a Economia dos Custos de Transação — sem se restringirem às amarras de “micro” e “macro”. A diferença existente se manifesta somente na adjetivação empregada. Ou seja, teríamos de um lado o sistema impessoal de preços, que caracterizaria a economia capitalista, e, de outro, teríamos o planejamento econômico humanamente consciente (com o perdão da redundância), que caracterizaria uma economia socialista. E, nessa linha, teríamos o “socialismo do século XXI” que repousaria em algum ponto no meio do caminho.
A absurdidade dessa assertiva, ainda que se revele imediatamente para os leitores mais atentos, é certamente merecedora de uma resposta detalhada. O que, novamente em nome da brevidade, não nos arriscaremos aqui. Mas caminhando para o final, é importante ao menos tangenciar a dinâmica real que explica o sucesso do capitalismo chinês e não recebe o devido destaque em nenhuma dessas grandes narrativas.
De antemão, para fazer justiça aos melhores exemplares de ambos os lados já apresentados, devemos salientar que, considerando sua influência, é bastante provável que os próprios idealizadores da linha de atuação do Estado Chinês tenham bebido na fonte da Economia dos Custos de Transação. Todavia, se de fato há essa relação, ela certamente aconteceu de forma muito mais pragmática e, novamente, sem se restringir às barreiras criadas, dentro da teoria econômica, entre as escolas do “micro” e as escolas do “macro”.
Ou seja, na prática, para os gestores políticos do capital chineses, pouco interessa o adjetivo ou a forma empregada, o que interessa é alcançar os objetivos que foram traçados. E tais objetivos foram traçados prevendo a atuação conjunta, porém delimitada, das instituições estatais e as empresas privadas. O Estado Chinês atua direcionando diretamente investimentos ou criando meios contundentes de influenciar o direcionamento de investimentos privados. Desse modo, foi capaz de manter a especulação financeira, envolvendo capital chinês, em limites consideravelmente inferiores aos de seus competidores, ao mesmo tempo em que impulsionou uma série de investimentos produtivos (incluindo pesquisas que têm possibilitado a adoção de novos procedimentos produtivos e a criação de novos produtos).
Enquanto, por exemplo, parte importante do capital atuando nos EUA foi canalizada para os cassinos financeiros (sofrendo inclusive com a crise de 2007-8 e outras crises menores que tiveram como epicentro o mercado financeiro), a ação disciplinadora do Estado Chinês têm garantido ciclos prolongados de acumulação de capital. Guiado, portanto, pelo mais puro pragmatismo capitalista, o Estado Chinês vem disciplinando tanto a ação dos gestores econômicos do capital quanto de sua classe trabalhadora (assegurando lucros mais altos para os primeiros), e, desse modo, tem possibilitado a expansão do capital, mesmo num quadro econômico geral bastante desfavorável.
Com essas observações sumárias, o que estamos destacando é que, pragmaticamente falando, há muitos méritos na atuação dos gestores políticos do capital chineses. Ao longo dos dois últimos séculos — ou seja, quando a corrida capitalista atinge a sua fase mais aguda —, o empreendimento chinês é muito provavelmente o que há de mais inventivo. Porém, é fundamental destacar que ele é inventivo, justamente na medida em que reconhece movimentos importantes da dinâmica capitalista e os manipula de forma a estimular diretamente a acumulação de capital (mas nada além disso!).
Ou seja, em comparação a outras ações políticas mais incisivas, os gestores chineses foram além do que fizeram, por exemplo, os gestores políticos japoneses e alemães no pós 2ª Guerra. Foram além porque encontraram condições socioeconômicas favoráveis e, a partir delas, ousaram manipular variáveis que outros gestores não encararam. Se compararmos, no entanto, com o empreendimento soviético, o intervencionismo chinês fica muito aquém. Além disso, é importante destacar que no primeiro, por muitos anos, houve de fato tentativas de se superar a lógica do capital, enquanto os gestores chineses atuaram criativamente no interior dessa mesma lógica.
Na gradação proposta pela Economia dos Custos de Transação, podemos indicar que os gestores chineses interviram em variáveis que, até então, os gestores políticos mais ambiciosos deixaram livremente sob responsabilidade do sistema impessoal de preços. Contudo, mesmo os gestore chineses não foram tão longe a ponto de elimarem o sistema de preços da dinâmica econômica chinesa. Já há inclusive exemplos de como as práticas especulativas (financeira e imobiliária) ganham tração em território chinês, ainda que enfrentando maior resistência.
Devemos finalmente acrescentar que, como é próprio da ação política nos horizontes capitalistas, o Estado Chinês pode somente buscar melhores formas de influenciar os rumos da economia doméstica, sem jamais os controlar de fato. Na prática, o que podemos indicar é que as ações adotadas pelos gestores políticos do capital chineses nunca foram garantidoras de sucesso, mas, tão somente, elevaram a probabilidade de que ele fosse alcançado. O mesmo, é claro, seguirá valendo para o futuro próximo e para o não tão próximo (se este houver!).