Tradução: Hayek, teórico e ativista, por Mounir Zakriti
Hayek sempre apresentou sua refundação do liberalismo como uma utopia, baseada na ideia de uma ordem social espontânea e autorregulada, contra as quimeras da justiça social.
O texto abaixo é uma tradução livre da resenha de Mounir Zakriti, Hayek, théoricien et militant, publicado em francês na La vie des idees, em 23 de novembro de 2023, a propósito do livro recém-lançado de Michel Bourdeau, La fin de l'utopie libérale: introduction critique à la pensée de Friedrich Hayek. Algumas das ideias de Hayek iluminadas pela resenha sobre o livro inspiram hodierna articulação de agentes econômicos e políticos, como nos exemplos de Musk e Milei. Isso faz de tais ideias um manancial aos que se interessam por expressões modernas do irracionalismo, como já outras vezes ventilado neste blog (aqui, aqui e aqui).
Hayek, teórico e ativista, por Mounir Zakriti
Hayek sempre apresentou sua refundação do liberalismo como uma utopia, baseada na ideia de uma ordem social espontânea e autorregulada, contra as quimeras da justiça social.
O Fim da Utopia Liberal tem o mérito de apreender Hayek, sua trajetória e sua obra a partir de um ângulo original, compreensivo e internacionalista, seguindo passo a passo o pensamento de Hayek. F. Hayek não pode ser definido como um simples economista, ou mesmo um simples teórico do liberalismo: ele é ao mesmo tempo um pensador teórico, mas também um militante cuja obra não pode ser compreendida sem levar em conta a hostilidade de F. Hayek ao socialismo e ao planejamento econômico, e ao conceito a eles ligado, a saber, a justiça social. F. Hayek também foi um ator da história e um ativista que contribuiu para renovar os fundamentos teóricos e epistemológicos do liberalismo, participando assim da construção da matriz do que os estudiosos hoje chamam de "neoliberalismo"; do Colóquio Lippman ao Committee on Social Thought em Chicago e depois para a Sociedade Mont-Pèlerin. O livro se propõe a abordar a obra e o pensamento de F. Hayek apresentando por meio de um quadro panorâmico coerente os conceitos-chave que possibilitam reconfigurar as bases teóricas e o arcabouço epistemológico do liberalismo clássico, com a noção de divisão social do conhecimento, de ignorância como definição de individualismo, de complexidade e, sobretudo, de uma ordem espontânea autogerada apreendida como um "sistema organizado complexo", mencionando especificamente a ligação entre a ordem espontânea e a evolução, que seriam ideias "gêmeas" ou paralelas. De fato, Michel Bourdeau traça, não sem erudição, a gênese e a estrutura do liberalismo tradicionalista e evolucionista hayekiano desde os primeiros textos fundadores, como Economics and knowledge (1937), até a obra Law, legislation and liberty (1973-1979), a apoteose de uma obra propriamente política, ainda que multidimensional.
Hayek contra os liberalismos
Se o livro apresenta uma certa tecnicidade necessária para a precisão do assunto, todos os conceitos são definidos e explicados, dirigindo-se de forma legível a um público amplo, tendo como principal dificuldade a grande densidade conceitual. O exercício é bem-sucedido, no entanto, porque não é apenas uma "introdução crítica" ao pensamento de Hayek que ele oferece, mas também um resumo dos principais conceitos e um guia de leitura. Em seguida, o livro enfatiza a utopia como estratégia e como filosofia política na obra de F. Hayek a partir de 1947 e na publicação do texto The intelectuals and socialism: para enfrentar e derrotar o socialismo, segundo Hayek, é preciso recorrer aos intelectuais, esses "revendedores de segunda mão em ideias", ou empreendedores das ideias, e disseminar ideias neoliberais, ou melhor, "genuinamente liberais", na forma de utopia voltada para convencer as massas consideradas maleáveis, e depois os governos para o estabelecimento das "regras de conduta justa" necessárias para o surgimento e bom funcionamento da "catallaxia", ou ordem econômica, que deve ser o modelo e paradigma da sociedade como um todo, demonstrando assim o pan-economismo hayekiano. Todos esses são dispositivos que provavelmente criarão a "Grande Sociedade", reivindicando estar na tradição de A. Smith e K. Popper, recriando assim uma filosofia da história com horizonte teleológico, sem que seja sempre possível distinguir entre o caráter descritivo ou positivo e o caráter normativo ou prescritivo: se ordem espontânea é "sinônimo" de evolucionismo ou se é produto dele, e se é "espontânea", por que fundar a Sociedade Mont-Pèlerin, escrever uma obra e requisitar a introdução de regras de conduta justa e leis que permitam promover o advento da "Grande Sociedade"?
Assim, no texto Intelectuals and socialism, de 1949, podemos ver que Hayek considera o liberalismo uma utopia, tanto como estratégia política quanto como doutrina ideológica. Através do livro de Michel Bourdeau, entramos diretamente no pensamento de Hayek de forma crítica, dotando-nos de ferramentas que nos permitem decifrar o mundo político e econômico contemporâneo, em particular os tratados europeus, tão ampla foi a influência das ideias de Hayek nos círculos liberais e além. Michel Bourdeau recorda-nos a necessária distinção entre liberalismo econômico e liberalismo político. Duas formas ou dimensões distintas que formam o liberalismo, porém, formas relacionadas. O liberalismo político precede o liberalismo econômico como pensamento e ideologia, o liberalismo político era sobre limitar o poder político e acabar com os abusos de poder promovendo os direitos dos indivíduos. O liberalismo econômico, no entanto, tem um significado político imediato: qualquer ação do governo é percebida como interferência desnecessária ou mesmo prejudicial. Mas os Whigs do século XVIII eram protecionistas, e sabemos que o liberalismo econômico se acomodou muito bem às ditaduras militares.
Por isso, é importante ressaltar que Hayek defende acima de tudo um liberalismo econômico que toma a economia de mercado como paradigma da vida em sociedade com a expressão de um "mercado monitorando o Estado e não um Estado monitorando o mercado". Hayek define-se como liberal e não como neoliberal para se referir à tradição liberal que apresenta como autêntica para "beneficiar-se do prestígio que lhe está associado". Essa é uma das dimensões do tradicionalismo de Hayek, além do fato de que as normas de conduta correta são produto de tradições que só devem ser modificadas marginalmente em nome da preservação dos mecanismos autogerados da ordem espontânea. Note-se que Hayek e seus seguidores se engajam em uma forma de "reescrever a história do liberalismo que ignora as lutas fratricidas que os vários membros da grande família liberal podem ter travado" (p. 17).
Assim, seria sábio notar que, enquanto Hayek travava abertamente uma batalha política, epistemológica e ideológica contra o socialismo e o planejamento em todas as suas formas, ele também travava uma luta contra Keynes, cuja General theory dominava amplamente os círculos de economistas e intelectuais em Cambridge. No entanto, Keynes também se dizia liberal e pode ser considerado como tal na grande família de pensadores liberais. F. Hayek também pronunciou uma forma de excomunhão contra J.-S. Mill, também um pensador e economista liberal, em razão de seu "utilitarismo" e seus "excessos socialistas".
Hayek Teórico e Ativista: Uma Cruzada Contra o Socialismo e o Socialismo
O livro também tem o mérito de sublinhar a "influência prodigiosa" que o trabalho de Hayek teve muito além dos círculos de economistas e acadêmicos. Ele é provavelmente um dos poucos economistas que conseguiu produzir verdadeiros best-sellers como The road to serfdom [O Caminho para a Servidão]. Traços do pensamento de Hayek podem ser encontrados tanto em Jimmy Wales, o fundador da Wikipédia, quanto em Margaret Thatcher, que afirmou abertamente ter estudado The Constitution of Liberty (1960), e que teria brandido em uma reunião do Partido Conservador britânico, declarando que "é nisso que acreditamos". Hayek também ocupa uma "posição singular" que se explica por seu compromisso político com uma causa. Hayek também tem a particularidade de redefinir o liberalismo para o século XX de forma sistemática, ou seja, propondo um sistema de conceitos relacionados entre si com um escopo normativo e prescritivo, ora reivindicado, ora implícito.
Assim, para Hayek, a liberdade torna-se não apenas uma "ausência de coerção" por meio de um poder arbitrário que impediria a livre circulação de bens e pessoas, mas também a faculdade de poder usar "o próprio conhecimento para alcançar os fins que estabeleceu para si mesmo", e o liberalismo torna-se uma utopia a ser implementada, em todas as contradições que isso levanta, uma vez que F. Hayek rejeita o intervencionismo e o construtivismo ao defender a constituição de uma nova forma de legislação e sociedade. Na verdade, para seus amigos liberais, os utópicos são os socialistas. No entanto, Hayek procura afirmar que "são as ideias que governam o mundo", reivindicando o legado de Hume. É nesse sentido, aliás, que a "mão invisível" revisitada pela lei e pelas regras de conduta justa funciona como uma "secularização da teodiceia" (p. 21).
Os fundamentos teóricos e epistemológicos da "Grande Sociedade"
Uma vez aceita a ideia de que uma das originalidades do pensamento de Hayek é postular e apresentar seu liberalismo como utopia, trata-se de compreender seus fundamentos e conceitos-chave para desdobrá-los e explicá-los, pois, assim como foi para Hegel nesse ponto, a utopia hayekiana neoliberal é um "sistema" que postula e clama pela "coragem da utopia", reconhecendo o fato de que o socialismo não poderia ter se difundido, como visão de mundo e como programa político, sem a ajuda e o apoio de "intelectuais". Para entrar no pensamento hayekiano, seria preciso começar pela influência que o subjetivismo pode ter tido sobre Hayek. Assim, o aspecto cognitivo, mesmo cognitivista, da epistemologia hayekiana é destacado no Capítulo I por uma leitura do artigo seminal Economics and knowledge (1937). De fato, o individualismo é definido a partir do fato de que cada indivíduo possui um "mapa mental" que lhe permite apreender o mundo por meio de representações e fragmentos de informações. O objetivo do mercado ou do catalaxia seria, portanto, permitir que os indivíduos interajam de acordo com suas representações ou percepções subjetivas em plena liberdade, sem impedimentos, dentro de um quadro que seria o da lei e das regras de conduta justa. A "divisão social da ignorância" permite conciliar a noção de individualismo com a ideia de subjetivismo segundo a qual temos apenas representações parciais, daí a necessidade de um sistema que permita a troca de informações e a comunicação por meio de sinais que são preços: esse sistema é a economia de mercado entendida como uma ordem espontânea autogerada e autorregulada com a qual não devemos interferir, pois isso levaria a uma distorção dos canais de circulação das informações e ao ajuste das expectativas individuais; uma verdadeira teoria do equilíbrio no legado de Carl Menger, em vez da teoria neoclássica do equilíbrio inspirada na oferta e na demanda.
O mercado é, assim, teorizado como um lugar para a troca de informações e os preços como sinais. Esse raciocínio leva justamente à rejeição de qualquer forma de planejamento central e de qualquer forma de intervencionismo de mercado, pois poderia prejudicar não apenas as "liberdades individuais", mas sobretudo os preços e, portanto, o fluxo adequado de informações. M. Bourdeau apresenta, assim, as bases da epistemologia hayekiana na forma de 3 conceitos: complexidade, ordem espontânea e evolução, todos os três intimamente ligados em sua própria definição, uma vez que a complexidade torna possível compreender a ordem espontânea e rejeitar o cientificismo ou, pelo menos, o "racionalismo construtivista", e o evolucionismo não-darwinista torna possível justificar a percepção da noção de ordem espontânea enquanto rejeita a sociobiologia e o " Darwinismo social". O evolucionismo e a evolução cultural tornam-se, assim, filosofias da história, paradoxalmente, uma vez que Hayek pede "intervenção" por meio de "regras negativas" para evitar qualquer "interferência" na "catalaxia", ao mesmo tempo em que proclama o caráter espontâneo e autogerado do mercado.
A "grande sociedade aberta" como horizonte teleológico e como narrativa
A utopia liberal de Hayek baseia-se em duas grandes narrativas, "a Grande Sociedade" e depois um "Mercado Mundial" que permitiria ir além da soberania nacional com o estabelecimento de uma "ordem jurídica internacional". Para a realização dessa "Grande Sociedade" seria necessário realizar uma verdadeira "cruzada contra a justiça social" considerada como um freio ao advento dessa utopia, que em última instância equivale ao que Hayek chamaria de "construtivismo". Ao redefinir o individualismo como "humildade em relação ao processo social" (p. 115), Hayek faz dele um dos pilares dessa Grande Sociedade que seria pluralista, em razão da pluralidade de perspectivas individuais.
Assim, a luta por sua realização envolve a luta contra tudo o que possa impedi-la, ao mesmo tempo em que enfatiza que essa Grande Sociedade não só precisa do mercado para funcionar, mas que toma o mercado como seu paradigma. Mas o que parece ser a principal preocupação do economista austríaco é desacreditar e refutar o "encantamento inepto" (p. 131) da "justiça social", o último avatar do que resta do socialismo, uma vez rejeitado o planejamento econômico e o dirigismo centralizado. Além disso, Hayek estabelece uma continuidade questionável entre justiça social e "servidão", uma vez que não há nada de "justo" na justiça social e seria até contrário à lei por não respeitar a igualdade formal.
Para além dessas considerações, a hostilidade à justiça social demonstra certa visão da relação entre o político e o econômico, uma vez que a esfera política deve ser separada da esfera econômica, "destronando" a política e rejeitando qualquer forma de intervenção estatal considerada como interferência ilegítima. Assim, para Hayek, a própria noção de "justiça social" seria uma "quimera" e um disparate sob todos os pontos de vista. O livro também tem o mérito de apresentar uma alternativa ao pensamento de Hayek sobre a noção de justiça social, ao defender o princípio da solidariedade com a ideia de "responsabilidade conjunta" e propriamente de direitos sociais, o que abre o debate sobre a natureza e o significado de uma "sociedade aberta", noção que teria sido sequestrada por Hayek.
Podemos sair da utopia neoliberal?
O livro conclui com a ideia de que a utopia liberal é hoje uma página da história política, mas que isso não é de forma alguma o fim do liberalismo como uma grande família de pensamento. Além disso, não é de uma utopia "neoliberal" que deveríamos estar falando? Prever a evolução dos sistemas políticos nas sociedades ditas avançadas seria um exercício perigoso. Além disso, os modos de governabilidade são muitas vezes uma mistura de várias correntes de pensamento, de fato as políticas governamentais atuais na França são provavelmente uma mistura de ultraliberalismo, liberalismo autoritário, neoliberalismo inspirado no evolucionismo e, finalmente, nova gestão tecnocrática com a presença de elementos populistas. Nenhum governo é "quimicamente puro" para ser apenas liberal ou neoliberal, entendendo-se que esses termos podem se referir a realidades diversas, ou mesmo autores e correntes de pensamento com ideias divergentes, embora tenham fundamentos comuns, como o individualismo. O debate sobre o pós-neoliberalismo não terminou, assim como o debate sobre a natureza do próprio neoliberalismo está, por definição, aberto.
Mounir Zakriti, Hayek, théoricien et militant, de 23 de novembro de 2023.