A fé distributivista, 35 anos depois, por Thiago Martins Jorge
Do Lula candidato, em 1989, ao Lula presidente em 2025
A fé distributivista, 35 anos depois
Por Thiago Martins Jorge (@ThiagoMarJor) (@thiagomjorge.bsky.social)
Acompanhamos nos últimos dias, disputas apaixonadas sobre o controle da narrativa que envolvia as transações por meio do Pix. Longe de ser uma novidade, completada a primeira metade do governo Lula III, é facilmente constatável a sintonia entre os grandes temas econômicos que tomaram conta da arena pública ao longo desses anos.
A primeira grande disputa se deu quanto à taxação de produtos chineses de baixo valor. Esta foi seguida pela reforma tributária. Mais recentemente, recebeu os holofotes a tabela “progressiva” do imposto de renda e, agora, a fiscalização das transações via Pix. Tudo isso, é claro, ocorrendo paralelamente a acirradas disputas sobre o orçamento público federal. Neste caso, as principais rubricas em discussão envolvem o pagamento dos juros da dívida e o chamado “orçamento secreto”.
Toda a discussão, portanto, gira em torno da busca de um equilíbrio impossível entre diferentes interesses. Temos de um lado uma fração da classe trabalhadora e da pequena burguesia que se vê prejudicada com a taxação dos produtos chineses e com a maior fiscalização da Receita Federal. De outro, temos os parlamentares que buscam aumentar o seu poder de barganha, abocanhando um maior quinhão do orçamento. E, finalmente, o capital financeiro, que é o recebedor dos juros da dívida, luta para que as contas públicas sejam geridas de forma a garantir não só o seu pagamento, mas também para que ele não seja corroído pela inflação. E muitas outras frações poderiam ser ainda adicionadas: servidores públicos que pleiteiam maiores salários, agências de pesquisa que carecem de maiores recursos e incentivos para recrutamento e execução de suas atividades, o capital industrial que busca incentivos para ampliar sua competitividade, etc..
Diante desse equilíbrio impossível, o governo Lula tenta demonstrar sua inclinação política com leves acenos e recuos. Nessa linha, poder-se-ia, é claro, argumentar que se o leme do Executivo estivesse sob o controle de um partido de oposição, os acenos e recuos seriam destinados para outras frações. No entanto, o que nos parece decisivo ressaltar, e aí estaremos adentrando numa constante da história recente brasileira, é que nenhum desses arranjos busca, de fato, influir sobre a geração da quantia a ser distribuída, ou seja, sobre a produção da riqueza.
José Chasin1, ao final dos anos 1980, repercutindo o discurso do próprio Lula (então candidato), notou que:
O exemplo mais extravagante e aterrador desse descompromisso com a realidade, em que a fé distributivista desemboca inadvertidamente no desmascaramento de si mesma, está na promessa enfática, inúmeras vezes reiterada por Luís Inácio da Silva, de exibir ao funcionalismo reivindicante as “gavetas vazias”. É o tipo mais inusitado e vexatório de exibicionismo de que se possa ter notícia, especialmente provindo de quem já foi Lula na vida, ou seja, a mais feliz e vigorosa liderança sindical que a história brasileira registra.
(...)
Exibir “gavetas vazias” ou “negociar o arrocho”, não por acaso, são apenas distinções de estilo de um mesmo e único conteúdo - a propositura ideal de mudanças que não se pronuncia pela mudança dos lineamentos materiais do sistema de produção. Constituem a recusa ou a incapacidade de reconhecer a necessidade e a possibilidade de um programa econômico alternativo que sustente, por suas consequências, um novo perfil da distribuição.
A propositura distributivista escanteia justamente aquilo que é o mais importante, isto é, o que será distribuído. Não se pode negligenciar, é claro, que a forma de distribuição impacta na futura geração de riqueza. Isto, contudo, não parece ser alvo da ação política consciente.
O que, portanto, gera frustração entre aqueles que estão genuinamente preocupados com os rumos do país é que as disputas bancadas pelo Executivo não tocam naqueles que de fato seriam os pontos mais delicados. Não é qualquer política de incentivo a geração de riqueza que alimentaria uma espiral de progresso social. Conhecemos bem o discurso do bolo (que primeiro tem que crescer, para depois ser distribuído). O que, na prática, significava impulsionar um novo ciclo de acumulação de capital via arrocho salarial.
Fato é que distribuir um bolo que não cresceu, também não é uma solução razoável para a questão. Alternativamente, Chasin propunha que:
A mudança do sistema de produção, na impossibilidade da superação do modo de produção, é o aspecto central do momento transitório primário, constitui propriamente seu objeto concentrado, uma vez que é o meio e a forma de combater e eliminar a exclusão social pela sua raiz - a superexploração do trabalho. Subentende um programa econômico de recomposição da malha dos setores produtivos, do redirecionamento de prioridades e da alocação de recursos (privados e públicos), de maneira que o aparato de produção e reprodução material da vida posto a serviço da sociedade global, deixando assim de funcionar exclusivamente em benefício da acumulação do capital atrófico e metropolitano. Não se trata de optar acanhadamente entre uma economia exportadora e uma economia de mercado interno, mas da estruturação de um conjunto que não seja exportador às custas da força de trabalho (pela exploração da perversamente chamada mão-de-obra barata), nem concentrado sobre o mercado interno através do amesquinhamento das necessidades e da forma de satisfazê-las.
Devemos abordar, em outro momento, a discussão complexa em torno do leque de possibilidades - ainda existente - para que se pudesse caminhar na direção apontada por Chasin. Cabe, contudo, reconhecer que “a mudança no sistema de produção” não foi seriamente tratada desde então.
Poder-se-ia, na direção contrária, argumentar que os partidos de oposição também não encabeçaram tal discussão; mas aí estaríamos abstraindo justamente o fato de que o sistema de produção existente não necessariamente desagrada os seus apoiadores mais influentes. Isso implica dizer que a fé distributivista é depositada sobre as bases acanhadas que sustentem o sistema de produção brasileiro: fortemente dependente do agronegócio e de outros setores de baixa complexidade (incapazes de ampliarem substancialmente a riqueza gerada e fortemente dependentes da superexploração do trabalho).
Finalmente, recolocando a questão em outros termos, podemos indicar que embora a massa de riqueza gerada pelo sistema produtivo brasileiro fique bastante aquém das necessidades da sociedade brasileira; ainda assim, ela atende, mesquinhamente, às demandas dos principais grupos econômicos atuantes no país (desde que, obviamente, a divisão do bolo mantenha o atual equilíbrio). Portanto, mantida a fé distributivista do governo Lula III, podemos nos preparar para mais debates acalorados sobre a divsão sovina de uma torta acanhada.