Disfarçando as rugas de um futuro decrépito, por Leandro Theodoro Guedes
Disfarçando as rugas de um futuro decrépito
Por Leandro Theodoro Guedes (@theodoroguedes93)
A última edição do Brazil Conference, evento organizado pelos brasileiros de Harvard, contou com a presença de relevantes figuras que encarnam os interesses do capital nacional. A participação de Paulo Lemann (setor de bebidas e varejo), Armínio Fraga (gestor político e consultor) e André Esteves (setor financeiro) recebeu atenção da mídia local, que repercutiu a fala do ex-presidente do Banco Central a respeito do congelamento do salário mínimo. Também relevantes foram os comentários sobre sua oposição a respeito do rompante protecionista do governo norte-americano, mas também pode ser destacado outro elemento igualmente evidente e presente nas falas: a repetição de velhas medidas de administração política para lidar com a crise.
Espaços como este são um importante laboratório de observação dos rumos para os quais certas expressões da burguesia nacional se direcionam. Para além das adjetivações, as falas por eles propaladas dão uma amostra de possíveis movimentações na economia e política nacional e externa.
Mais distante dos assuntos mais candentes no Brasil, Lemann, ao comentar a sanha tarifaria que compõe a linha de frente do protecionismo trumpista, apesar de ver o processo com restrições e o presente como “uma bagunça exagerada”, reforçou crer na “disrupção e em chacoalhar as coisas”, cujo resultado só pode ser obtido depois de “navegar por elas”. Também destacou ser “crente nos Estados Unidos e na filosofia daqui e em todos os empreendedores aqui existentes”, demonstrando uma busca pelo senso de medida entre aquela disrupção e a habilidade empreendedora tão comum aos homens de negócio norte-americanos. O brasileiro nada mais faz do que retomar o velho conselho fayolista, ainda assim guiado pela certeza de que nem mesmo a “bagunça” pode abalar um gestor que repousa sobre um capital de magnitude bilionária e tem pouco a perder.
Esteves, que também se disse adepto do bom senso, foi até mais enfático na crítica a Trump, considerando os últimos acontecimentos “um horror econômico, um horror geopolítico, um horror moral”, mas assim como Lemann, a fala incisiva foi sucedida por ponderação e otimismo. Logo lembrou-se de que o Brasil, como pujante exportador de commodities, não é afetado de forma significativa pela guerra comercial direcionada a produtos industrializados. O banqueiro foi além, dizendo que a economia agroexportadora brasileira se apodera de alto nível tecnológico de tal modo que setores industriais estariam muito aquém desse nível:
“às vezes tem uma certa obstinação, principalmente em economistas com a cabeça mais no mundo antigo, uma certa obsessão com reindustrialização e tal. Quando que na verdade eu fui há dois anos atrás, eu fui ver a colheita do algodão. Eu fui numa das fazendas dos Maggis lá em Mato Grosso em Sapesal. Sapesal é onde começou essa revolução agrícola maravilhosa brasileira e aí eu entrei numa colheitadeira daquelas e tal, enorme, e o técnico sofisticado dirigindo aquilo, controlado tudo por GPS, existe um rápido processamento do algodão que é colhido pela própria máquina, uma distribuição logística sofisticada e o cara vai trocando o fertilizante de acordo com o Weather Forcast altamente sofisticado a cada metro quadrado numa fazenda de 70.000 hectares. Isso é um processo industrial! A gente tá obcecado com industrialização. Ou para fazer a tampinha dessa garrafa aqui é mais sofisticado do que isso? Não é! Então eu não tô com essa obsessão assim de reindustrialização. Acho que o Brasil tem seus talentos, suas vantagens competitivas, sua liderança global, ocupa uma posição geopolítica única que nós somos o principal provedor de food security do mundo. Nos próximos 20 anos do delta de crescimento do consumo alimentar mundial o Brasil vai ser responsável por prover 80%. Isso é uma posição geopolítica fantástica! Se não fizer besteira nem pra esquerda nem pra direita, andar na rua, a gente pode tirar muita vantagem desse posicionamento”.
A fala, com a ressalva da ênfase na tecnologia, lembra os defensores do agrarismo da República Velha como Alberto Torres e Américo Werneck. E embora o gestor esteja correto em alguma medida, uma vez que o simples fato de haver um processo de transformação não garante uma superioridade técnica. Mas em grande parte, a fala também carece de correspondência com a realidade em aspectos centrais, na medida em que os dados econômicos mostram que a agropecuária rende piores salários – no Brasil apenas superior aos serviços domésticos segundo das da PNAD, um número menor de empregos e a mobilização limitada da cadeia produtiva, uma vez que as maiores economias do mundo são industrializadas ou relevantes em serviços complexos. Mas, em suma, mostra-se uma harmonia e disposição entre o setor financeiro e o agropecuário no sentido de manter os rumos da economia nacional.
Esteves também destacou o avanço das privatizações como forma mais acertada para se fazer política social, destacando o caso do saneamento básico. Nisso há um alinhamento muito claro com Fraga. Para ele, “as prioridades do gasto público no Brasil estão completamente erradas”. Uma das medidas seria, além da redução de folha de pagamento, também “congelar o salário mínimo em termos reais de 6 anos”. Seu fundamento é simples: uma vez que os gastos com a seguridade social compõem grande parte dos gastos públicos, e boa parte dos benefícios são indexados ao salário mínimo, o equilíbrio fiscal depende desse freio e também de uma nova reforma da previdência. O sacrifício seria necessário, “pro país poder crescer num com uma taxa rápida o suficiente para poder pagar sua dívida”.
Fraga nada mais faz do que requentar uma fórmula já usada de forma exaustiva no Brasil. Para citar alguns exemplos, o congelamento do salário mínimo foi efetivamente imposto tanto no governo ditatorial, por Roberto Campos, quanto por Sarney, na redemocratização. E em ambas as oportunidades, sob a desculpa da contenção inflacionária. O remédio permanece e mudam os sintomas. E o efeito? No passado, a medida esteve longe de obter êxito, como é amplamente sabido. No presente, as chances não parecem muito boas. Comentamos aqui a respeito de isenções fiscais, e sabemos como o orçamento público está muito mais comprometido com a dívida interna, que pela lógica de Fraga deveria ser ainda mais priorizada, do que com os gastos com previdência. O que não está evidente é que a contenção salarial é o antídoto preferido para tentar reverter a queda da taxa de lucro no Brasil. Vejamos o movimento da taxa de lucros no Brasil a partir de 1950:
Figura 1: Taxa de lucro no Brasil (1950-2020)
Fonte: Marquetti et al. 2023, p. 320
Os períodos em que o salário mínimo teve o reajuste restringido foram justamente aqueles que mostraram uma queda mais abrupta da taxa de lucratividade. Segundo dados do IPEA, considerando valores corrigidos, no início de 1964 o salário mínimo real era aproximadamente correspondente a R$ 1500, em 1970 era de menos de R$ 800,00. Nos anos 1980, com nova queda da lucratividade, o salário real passou de cerca de R$ 800,00 em 1985 para menos de R$ 700,00 em 1989.
Assim, a fala de Fraga pode indicar nova pressão sobre os salários e sobre a já combalida seguridade social antevendo um novo ciclo de queda dos lucros no Brasil.
Nas últimas semanas, Thiago Jorge mostrou como a pura fabricação de conceitos costuma ser a força motriz do pensamento administrativo-econômico. Também mostrou que a capacidade de predição e criatividade dos gestores políticos do capital têm sido diminutas. A visão ainda mais pragmática dos gestores do capital nacional não apresenta um cenário muito distinto. Eles, que diferentemente dos analistas, não têm uma grande necessidade de elaborar conceitos e tampouco precisam explicar seus prognósticos, têm, por outro lado, certa necessidade de acertar suas previsões. A isso corresponde a antecipação de cenários e posições que, no caso dos gestores em tela, buscam a repetição de ações que conservarão seus ganhos, mas, sendo irresolutas no plano geral, socializarão as perdas. Seja para o caso de Lemann, que se concentra na empresa individual, ou para o caso de Fraga e Esteves, mais voltados para o nível “macro”, prevalece a tranquilidade diante da certeza do amortecimento dos abalos de uma possível crise.
O fim de semana em Harvard iluminou alguns possíveis caminhos para o futuro próximo. A julgar pelas ideias debatidas, esse futuro é imaginado pelo passado, alternativa de um capital incompletável, para usar o termo de J. Chasin, que por trás da constatação do “juro muito apertado e do fiscal muito frouxo” se lança contra as conquistas sociais e busca aumentar sua fatia do patrimônio público, tudo isso se resguardando na subordinação também imposta pela economia primária. Para além das adjetivações, é sempre necessário compreender a posição do capital diante das lutas concretas que produzem ideias claras e objetivas quanto aos interesses de seus portadores.
Referências
Marquetti, A., Maldonado Filho, E., Miebach, A., & Morrone, H. (2023). Uma interpretação da economia brasileira a partir da taxa de lucro: 1950-2020. Brazilian Journal of Political Economy, 43(2), 309–334. https://doi.org/10.1590/0101-31572023-3432